O
USO EM SALA DE AULA DE PUBLICAÇÕES DO MOVIMENTO ESTUDANTIL COMO FONTE PARA
O ENSINO DA HISTÓRIA DA RESISTÊNCIA À DITADURA MILITAR NO BRASIL (1964-1985)
As publicações produzidas pelo
movimento estudantil foram um importante meio de resistência à ditadura militar
instaurada no Brasil com o golpe de Estado civil-militar de 1964. Integravam a
chamada imprensa alternativa, nome atribuído a um conjunto de publicações que
não só encontravam brechas para noticiar o que a censura impedia que a imprensa
publicasse, como também davam um enfoque muitas vezes radicalmente oposto ao da
mídia tradicional aos fatos e temas do período. Publicações como Pasquim (1969), Bondinho (1970), Politika
(1971), Opinião (1972), Ex (1973) fizeram oposição ferrenha ao
regime militar e entraram para a história da imprensa alternativa e da resistência
à ditadura no Brasil, especialmente nos chamados “anos de chumbo”, em que a
censura à imprensa tradicional atingiu seu auge.
Dentro da categoria da imprensa
alternativa, as publicações estudantis foram um importante canal de mobilização
política dos estudantes, bem como um meio de driblar a censura, divulgando
posições políticas, questões ideológicas e críticas ao regime militar,
especialmente a partir do gradativo processo de militarização do Estado e de
recrudescimento da repressão.
O movimento estudantil constituiu-se
em agente político de grande relevância na conjuntura política e social daquele
momento, por sua atuação decisiva na mobilização contra a ditadura e na
denúncia das arbitrariedades praticadas pelo regime, ações que se somaram a de
outros movimentos sociais e políticos e que culminaram no processo de
redemocratização do país.
Mesmo subdividido em vários
segmentos e abrigando linhas ideológicas divergentes e em constantes disputas internas,
o movimento estudantil promoveu a “união dos estudantes em lutas contra o
regime militar e em defesa da universidade gratuita e de qualidade e da
democracia.” (ZAPARTE, 2011, p. 56). Por esta razão, o governo militar impôs
diversas limitações à atuação estudantil, com o objetivo de extinguir o
movimento, inclusive com a Lei Suplicy de Lacerda, de 1964, que promoveu a destituição
da autonomia das entidades representativas do setor, que foram transformadas em
apêndices do Ministério da Educação.
O
movimento estudantil, ao assumir uma postura de oposição ao modelo de governo e
às práticas estabelecidos pelos militares a partir de 1964, entrou para o rol
dos “inimigos” que precisavam ser combatidos por meio de ações desencadeadas
pelo regime para eliminar todas as formas de resistência. Por seu
posicionamento em relação aos rumos da educação e por sua luta antiditatorial,
as lideranças do movimento estudantil passaram a representar para a polícia
política do regime “inimigos internos” que precisavam ser vigiados e
enquadrados na Doutrina de Segurança Nacional.
“[...] a repressão realizada “em nome da
Segurança Nacional” [...] se desenvolveu [...] mediante práticas autoritárias e
repressivas, que objetivaram silenciar ou eliminar toda oposição política. Essa
oposição, geralmente denominada “comunista” pelos órgãos de segurança, era alvo
de ações que iam desde a identificação de suspeitos, perseguições e prisões,
até as práticas violentas de tortura e assassinatos de estudantes que, não
raras vezes, atuaram na clandestinidade” (ZAPARTE, 2011, 164).
A DOPS (Delegacia de Ordem Política
e Social) era um dos órgãos que colocavam na prática as leis e acordos desse
aparato por meio da violência, prisão e tortura de suspeitos de fazer oposição
ao regime. Enfrentar a repressão imposta pela ditadura militar impunha ao
movimento estudantil a necessidade de buscar caminhos alternativos para se organizar
e resistir, bem como para mobilizar e engajar mais jovens em suas lutas e ações
políticas. Um dos meios utilizados para a mobilização eram os jornais, boletins
e outras publicações, editados e distribuídos pelos grupos que defendiam as
mais diversas posições políticas e ideológicas, dentro e fora das instâncias de
representação estudantil existentes.
O
período da ditadura
militar foi, portanto, um momento de grande produção e circulação de jornais e
publicações estudantis, pois tais publicações representavam um importante canal
para a articulação da resistência, especialmente nos momentos em que as
entidades representativas do movimento estudantil foram extintas e uma parcela
dos estudantes passou a atuar na clandestinidade, muitos deles em movimentos e
grupos de luta armada.
Especialmente
a partir da década de 1970 as publicações estudantis viveram um período de
grande efervescência e produção. Naquele momento de consolidação do processo de
militarização do Estado e de recrudescimento da repressão, os estudantes precisavam
buscar caminhos alternativos para se organizar e resistir, bem como para
mobilizar e engajar mais jovens em suas lutas e ações políticas. Neste período
foram criados importantes jornais e revistas que marcaram a história da
imprensa alternativa do país.
Entre
as publicações que mais se destacaram, com grande circulação, estão Piquete (produzido por estudantes e
operários), Amanhã (criado pelo
Grêmio da Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo), Grêmio Informa (também da Faculdade de
Filosofia da USP), Libertação (produzido
pela Ação Popular, grupo que liderava o movimento estudantil naquele momento) Poeira (do movimento estudantil da
Universidade Estadual de Londrina, no Paraná). Havia também jornais estudantis
com circulação mais restrita, mas que desempenharam um papel importante na
resistência, como o Brado Universitário,
produzido pelo Centro Acadêmico do curso de Direito da Universidade Estadual de
Maringá, no Paraná.
Por todas essas razões, os periódicos
produzidos pelo movimento estudantil constituem-se em fontes ricas e preciosas
para o ensino da história deste importante e turbulento período político e
social por que passou o Brasil. E, especialmente, para o ensino da história da
resistência ao regime militar.
As
fontes na sala de aula
O uso de fontes em sala de aula para o
ensino de história vem sendo tema de debates na academia e mesmo nas escolas já
há alguns anos. Segundo Caimi (2008), os debates têm por objetivo demonstrar a possibilidade
do uso de fontes em sala de aula “como elemento de superação do
conteudismo/verbalismo e [...] suas potencialidades como instrumento de
produção de conhecimento histórico na educação básica” (Caimi, 2008, 129). Tais
propostas estão sintonizadas com as discussões em torno da renovação da
historiografia e da própria pesquisa histórica que vêm sendo empreendidas no
universo acadêmico nos últimos anos.
No entanto, trabalhar fontes em sala de
aula requer uma abordagem completamente diversa do que tradicionalmente era
feito pelos manuais escolares ou mesmo pelos livros didáticos até poucos anos
atrás, rompendo com um antigo paradigma que as colocava como documentos com fim
em si mesmos, ou seja, que por si só transmitiam informação “verdadeira” ou confirmavam
a veracidade de um enunciado. É necessário que o professor, em sala de aula,
lance às fontes o mesmo olhar do historiador que, em sua pesquisa, sobre elas
se debruça para formular perguntas, raciocínios e hipóteses, buscando ir além
do que está demonstrado no documento/fonte analisado.
“Para
além do caráter ilustrativo e comprobatório que o uso escolar de fontes assumiu
nos manuais didáticos em épocas passadas, as atuais políticas definem um novo
ideário, que imprime centralidade à tarefa de relacionar o estudo de fontes
históricas à construção do conhecimento” (Caimi, 2008, 140).
Segundo Caimi, metodologicamente é
necessário que o professor considere “o papel ativo do estudante nos
procedimentos de compreensão e interpretação” (Caimi, 2008, 141) das fontes em
sala de aula. Somente desta forma as mesmas podem extrapolar o caráter
meramente ilustrativo que tinham no passado e contribuir para o desenvolvimento
no aluno de habilidades como a observação, a problematização, o senso crítico,
que levam à produção de sínteses e à construção do conhecimento histórico de
forma autônoma.
Para Albuquerque Júnior, a
história tem hoje a missão de “fazer defeitos nas memórias”, de fazer “as
memórias errarem”, já que história e memória são duas categorias distintas e,
em certa medida, conflitantes. Especialmente no que se refere às memórias
oficializadas, que o autor denomina de monumentalizadas e que se tornam uma
referência quase que obrigatória na história de uma sociedade, por meio de
celebrações e comemorações. Por meio da crítica realizada através da pesquisa
histórica, tais memórias passam ser questionadas e, desta forma, é possível
enxergar “seus defeitos, seus pontos de sutura, fazendo aparecer as costuras
malfeitas, os nós forçados, os pontos de esgarçamento das tessituras do
passado” (Albuquerque Júnior, 2012, 37).
Partindo dessa visão de Albuquerque
Júnior, o uso das fontes no ensino de história contribui para o exercício da
crítica à narrativa do passado construída por meio da monumentalização, às
noções consagradas, na medida em que possibilita um múltiplo olhar dos atores
envolvidos no processo de ensino/aprendizagem, olhar este que vai além do que
ficou cristalizado na memória coletiva. A análise e a observação da fonte, a
formulação de hipóteses, a busca por respostas, processos tão inerentes ao
trabalho do historiador, são ações que, dentro da sala de aula, permitem aos
estudantes construir o conhecimento histórico de maneira crítica e
questionadora, provocando “defeitos nas memórias”.
Enquanto disciplina escolar, a história
tem o papel de “formadora de sujeitos, de construtora de formas de ver, de
sentir, de pensar, de valorar, de se posicionar no mundo” (Albuquerque Júnior,
2012, 31). Tem, portanto, a capacidade de produzir as subjetividades do ser
humano, levando-o ao aprendizado da alteridade, das diferenças e das
possibilidades de existência de “outras formas de sermos humanos [...], de
outros valores, de outras ideias, de outros costumes que não aqueles dos homens
e mulheres contemporâneos” (Albuquerque Júnior, 2012, 31). Desta forma, o
aprendizado histórico deve ser um exercício de aceitação e tolerância para com
o distinto, para com o que nos causa estranhamento por se apresentar diferente
do que conhecemos.
Para alcançar tais objetivos, o
professor de história precisa ter em mente que o aprendizado histórico tem um
processo específico, que envolve a “consciência histórica” (RÜSEN, 2011). Não
bastam conteúdos históricos para que se dê o aprendizado histórico. Não são
informações históricas que formam a consciência histórica, mas sim o
entendimento de conceitos estruturais, como temporalidade, mudança e
permanência, semelhança e diferença, empatia histórica, evidências, imaginação
histórica, intersubjetividade.
“Com isso, a didática da história se
volta para aqueles processos mentais ou atividades da consciência sobre os
quais afinal se funda a referência do aprendizado histórico à história.
Trata-se de processos de pensamento e de formação estruturadores da consciência
que geralmente encontram-se por trás dos conteúdos e que habitualmente ficam
velados ao aprendiz [...]” (RÜSEN, 2011, 42).
Ao utilizar fontes em sala de aula, o
professor estará trabalhando junto com os alunos tais processos mentais que
redundam em maior visão crítica e no aumento da capacidade de síntese que
possibilita o entendimento e o aprendizado histórico.
Neste
sentido, as publicações estudantis enquanto fontes para o ensino de história
trazem múltiplas possibilidades de construção do aprendizado histórico, por
permitirem uma abordagem a partir da visão de agentes políticos que atuavam
fora da esfera do poder constituído e que, por esta razão, foram reprimidos e
tratados pelos agentes do Estado como um mal social a ser combatido. Tal
abordagem ajuda a compreender e contextualizar a história do período, suas
implicações no passado, no presente e no futuro.
Atualmente,
o acesso às publicações estudantis está bastante facilitado graças ao avanço
tecnológico dos últimos anos, sendo possível obter exemplares dos principais
jornais estudantis por meio da internet. Metodologicamente, tais fontes podem ser
trabalhadas em sala de aula a partir de diversos recortes.
O
professor pode eleger um determinado período a ser estudado, ou uma temática;
pode escolher charges - recurso que era bastante utilizado nas publicações
estudantis – fotos ou ilustrações de uma determinada publicação; pode destacar
editoriais. O trabalho com as fontes pode se dar por meio de atividades em
grupo, com análise mediada pelo professor do conteúdo de reportagens ou de
imagens, objetivando, por exemplo, a construção de textos coletivos acerca do
que foi estudado, ou mesmo debates entre os grupos formados com foco nas
temáticas analisadas. Enfim, as possibilidades são bastante amplas.
Ao
proporcionar aos alunos o contato e o trabalho com essas fontes, o professor de
história estará municiando os estudantes para a operação dos processos mentais
necessários à construção do aprendizado histórico. E também para uma reflexão crítica, a partir
de um olhar diferente: o olhar de outros atores políticos e sociais além dos
que tiveram seus posicionamentos registrados nos anais da história oficial, e
até mesmo na chamada imprensa tradicional do período. Desta forma, é possível levar
“os alunos a construírem sentidos e significados para textos
e relatos já tramados” (Albuquerque Júnior, 2012, 38), trabalhando a desconstrução de uma
narrativa monumentalizada e cristalizada do passado.
Referências
Regina Célia Daefiol é jornalista e graduanda do curso de
História da Universidade Estadual de Maringá
ALBUQUERQUE
JÚNIOR, D. M. Fazer Defeitos nas Memórias: para que servem a escrita e o ensino
da história? In: GOLÇALVES, M. A.; ROCHA, H.; REZNIK, L.; MONTEIRO, A. M.
(Org.). Qual o valor da História hoje?
Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012, p. 21-39.
CAIMI, F.
E. Fontes históricas na
sala de aula: uma possibilidade de produção de conhecimento histórico escolar? Anos 90, v. 15, n. 28, p.129-150, 2008.
RÜSEN,
J. Aprendizado histórico. In: SCHMIDT, M. A.; BARCA, I.; MARTINS, E. R. (Org.). Jörn
Rüsen e o ensino de história. Curitiba: Editora UFPR, 2011.
ZAPARTE, A. A DOPS e a repressão ao movimento estudantil em
Curitiba – Paraná (1964-1969). 2011. 177f. Dissertação (Mestrado em História,
Poder e Práticas Sociais) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade
Estadual do Oeste do Paraná, Marechal Cândido Rondon.
Bom dia! muito interessante esse artigo, porém, o momento político que estamos vivendo, com a ascensão da direita ao poder, conseguiremos trabalhar esses temas em sala de aula sem que possamos sofrer algum tipo de censura?
ResponderExcluirBom dia, Benedito. Realmente, estamos vivendo um momento muito delicado e o professor de História tem que lidar com uma linha muito tênue que separa o que é viável e o que não é viável discutir em sala de aula. Porém, os conteúdos da chamada "história difícil ou traumática" precisam ser abordados de alguma maneira. Desta forma, como professores, precisamos buscar caminhos para lidar com esses conteúdos da melhor forma possível. Creio que esse caminho passe pelo cuidado na abordagem e pelo trabalho com as fontes junto aos alunos como meio de embasar cientificamente o conteúdo a ser abordado. Espero ter respondido sua questão.
ExcluirRespondeu sim! Obrigado...e parabéns pelo artigo.
ExcluirBoa noite!
ResponderExcluirRealmente as fontes jornalísticas são riquíssimas. Elas tornam-se uma ferramenta de fundamental importância para a construção do conhecimento histórico. No artigo você aponta algumas possibilidades do professor utilizar o jornal na sala de aula como ferramenta para discutir a resistência estudantil na ditadura. Como posso fazer a leitura dessa fonte? Tem algum roteiro que posso seguir?
Parabéns pelo artigo.
Mayra Ferreira Barreto.
Bom dia, Mayra. Obrigada! É verdade, as fontes jornalísticas são mesmo muito ricas, em especial os periódicos produzidos pelo movimento estudantil, pois nos permitem ter contato com visões muito diversas partilhadas pelos jovens que viveram o período turbulento da ditadura militar. Em relação à leitura, em primeiro lugar temos que ter em mente que se trata de uma fonte. E, como tal, deve passar pela análise crítica semelhante à que faríamos com qualquer outro tipo de fonte, lançando sobre ela diversas questões. Esse procedimento, que é a base da pesquisa historiográfica, deve também ser realizado em sala de aula, levando os alunos a pensarem criticamente a fonte apresentada. O professor, ao utilizar os periódicos em sala de aula, deve estimular o aluno a pensar sobre suas características e peculiaridades. Não pode escapar à análise aspectos como quem produziu a publicação, como a produziu, como ela está organizada visualmente - uso de mais ou menos fotos, ilustrações, quais assuntos estão em destaque - como a publicação chegava ao público-alvo e quem era esse público, quais os temas mais tratados. A partir desta problematização, é possível traçar um panorama da fonte que permitirá saber a partir de que lugar de fala partiram as informações ali contidas e quais reflexões é possível fazer a partir delas, no sentido de construir uma narrativa sobre aquele momento do passado. Claro, esses aspectos devem ser abordados considerando as capacidades de cognição correspondentes à idade dos alunos que trabalharão com a fonte. Ou seja, assim como o historiador precisa fazer a crítica interna e externa de um periódico quando utiliza esse tipo de fonte em sua pesquisa, também o professor deve levar os alunos a realizarem essa análise crítica, levando sempre em consideração que um jornal, uma revista, não são um retrato fiel da realidade, e sim uma representação de momentos particulares desta realidade que nos permitem compreender aspectos de um passado a partir do nosso presente. Espero ter respondido sua questão.
ResponderExcluirAbraço
Regina Célia Daefiol