Rafael Dalyson dos Santos Souza


O PRINCÍPIO DA SIMETRIA DE BRUNO LATOUR NO ENSINO DE HISTÓRIA: UMA LEITURA DAS CONTROVÉRSIAS DOS EVENTOS A PARTIR DA APRENDIZAGEM HISTÓRICA



Introdução
A tarefa de lecionar constitui também uma tarefa de pesquisa e prática científica: é o professor quem seleciona, organiza e produz conhecimento junto (ou não) aos seus alunos. Assim, a tarefa de lecionar é também uma tarefa de cientista, de produtor de conhecimento. Neste sentido, o questionamento inicial que esta pesquisa visa responder é que conhecimento este cientista/professor produz? O que caracteriza esta produção de conhecimento histórico pelo professor e pelos alunos?

Destacamos o princípio da simetria de Bruno Latour (1997, p. 24): a ideia de apresentar as controvérsias sobre a construção do conhecimento científico, questionando as noções entre verdadeiro e falso dentro da própria construção dos “fatos”. Com isso, visamos compreender como seria a construção de um Ensino de História “assimétrico” e propor as maneiras de se discutir simetricamente eventos históricos em sala de aula partindo de uma experiência concreta - desenvolvida numa turma de 2º ano na disciplina de Estágio Supervisionado IV acerca da temática da “Guerra Fria” - para entender o que caracteriza um ensino de História simétrico, e assim, mapear a própria construção dos “fatos históricos”.

Simetria e Ensino de História: uma relação científica
Em seu livro “A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos” Bruno Latour (1997) analisa a construção do conhecimento científico tanto pelas ciências naturais como pelas sociais, e apresenta o conceito de simetria. Inicialmente, Latour (1997, p. 24) propõe duas noções para o conceito: “[...] cumpre não somente tratar nos mesma termos os vencedores e os vencidos da história das ciências, mas também tratar igualmente e nos mesmos termos a natureza e a sociedade.”

Assim sendo, em seu estudo, Latour propõe a compreensão destas duas noções para o conceito, caracterizando assim a simetria generalizada, e linhas a mais no mesmo parágrafo afirma: “O trabalho de campo que aqui apresentamos é, por conseguinte, duas vezes simétrico: aplica-se ao verdadeiro e ao falso, esforça-se por reelaborar a construção da natureza e da sociedade.” (LATOUR, 1997, p. 27, grifo nosso) Destacamos o primeiro aspecto da simetria proposta por Latour: a ideia de apresentar as controvérsias sobre a construção do conhecimento científico, questionando as noções entre verdadeiro e falso dentro da própria construção dos “fatos”.

Após a escolha do tema, o professor/pesquisador irá selecionar fontes, textos, filmes, músicas, imagens, charges, e etc. Faz parte do processo de construção científica a seleção de alguns aspectos, ou melhor, de problemas a serem resolucionados, e aí se encontra a chave da questão: a seleção dos problemas resulta na construção da aula como um todo.

Com a seleção do tema “Guerra Fria” pode-se discutir de diversificadas formas a depender da abordagem do professor. Ele pode seguir ipsis litteris o que se encontra no livro didático e ser mais um dos chamados “reprodutores do livro”; pode dialogar com o livro didático e com outras fontes; e pode também excluir o LD e optar por outros recursos didáticos como fichas de discussão, textos impressos, livros diversos, etc. Mas o que visamos destacar é como a seleção da “problemática” ou dos “objetivos” são determinantes para o entendimento dos processos históricos.

Thomas Khun (1998) filósofo e teórico da Ciência e da Técnica dá ao que chamamos de “problemática” e de “objetivos” o nome de “quebra-cabeça” para perscrutar qual os interesses dos cientistas em se resolver tais problemas. Primeiro, Khun (1998, p. 60) entende que os problemas são direcionados mediante um paradigma que seleciona quais problemas são interessantes e quais não são. Segundo, Khun (1998, p. 60) afirma que tais problemas já possuem uma solução prévia. Por fim, Khun conclui que o que motiva tais pesquisadores a resolver tais problemas é que “[...] se for suficientemente habilidoso, conseguirá solucionar quebra-cabeças que ninguém até então resolveu ou, pelo menos, não resolveu tão bem.” (KHUN, 1998, p. 61)

No caso específico da Guerra Fria, uma série de abordagens diferentes se dedicou a estudar o período. Luís Nuno Rodrigues por exemplo discute sobre “O debate sobre as origens da Guerra Fria” e demonstra em seu texto como as diferentes versões selecionam problemas específicos e elegem eventos como mais importantes dentro de um só processo. É o caso das abordagens da visão tradicionalista, a linha revisionista, a linha pós-revisionista e a Nova-História.

Para entendermos como o ensino de História pode ser “assimétrico”, na nossa visão, devemos compreender na prática como cada uma dessas linhas teóricas se debruçou para estudar a temática. Segundo Luís Nuno, a visão “tradicionalista” era desempenhada por atores ainda durante a Guerra Fria ainda nos anos 40 até a década de 60. Abordavam Stalin como um ditador totalitário semelhante a Hitler e culpavam a URSS como responsável pelo desacato as relações diplomáticas devido ao totalitarismo e o expansionismo soviético, o que colocava os EUA numa posição defensiva. (RODRIGUES, p. 2)

Outra vertente era a linha revisionista, que segundo Rodrigues se desenvolveu nos finais da década de 50. O autor aponta que tal linha surge quando da crise do McCarthyismo. Os revisionistas criticam a visão tradicional por responsabilizar exclusivamente na URSS e apontam a atuação dos EUA como interventor e expansionista desde fins da II Guerra. (RODRIGUES, p. 3-4)

A outra linha apresentada por Rodrigues é a pós-revisionista, que segundo o autor apresenta uma leitura “meio-termo”. Aponta para os fatores externos e internos entre EUA e  URSS. Destaca que ambos estavam confrontados com uma destruição da Europa. A linha surgida na década de 70 refletia a política de distensão e de aproximação entre as duas superpotências (RODRIGUES, p. 5).

Por fim, a última das linhas teóricas apresentadas por Rodrigues é a “Nova História” escrita quando do fim da Guerra Fria e da queda do muro de Berlim. O autor destaca que esta linha apresenta a bipolaridade entre o bem (representado pela democracia norte-americana) e o mal (representado pelo autoritarismo soviético). (RODRIGUES, p. 7)

Na abordagem de Rodrigues, cada linha teórica seleciona eventos dentro da própria Guerra Fria, como forma de abordagem do evento histórico, excluindo outros eventos e outras leituras. Constitui assim uma abordagem “assimétrica” por silenciar os embates e as controvérsias dentro da Guerra Fria, olhando apenas para “um lado da História”. Tal abordagem cria o seguinte esquema



Figura 1. Concepção assimétrica dos eventos históricos.
        
A visão linear da História além de apresentar uma visão evolutiva da história apaga as controvérsias dentro dos próprios processos históricos. Questiona-se, com isso, se dentro de cada período citado não haveria outras perspectivas teóricas, bem como outras formas de enxergar os eventos históricos. Neste esquema, tem-se a compreensão de um ensino de História “assimétrico” por não abordar “vencidos e vencedores”, atribuindo conceitos como os de “totalitarismo” e “expansionismo” a “um lado da história” sem compreender o processo de embates, as controvérsias entre os lados.

A partir disto, a compreensão simétrica da História passa por uma leitura dos eventos históricos que mapeie as controvérsias, sem eleger vencidos ou vencedores, mas problematizando tais construções. Como exemplo, elegemos dois eventos dentro da Guerra Fria: a Guerra do Vietnã e a intervenção do exército soviético no Afeganistão.

O primeiro, envolveu a participação dos EUA pela não perca de poder na península da Indochina e o segundo surgiu segundo os soviéticos “[...] como sendo uma operação ideológica, justificada pela «solidariedade proletária» e destinada a impedir que um país que entrou na órbita socialista se afaste dela, no cumprimento da teoria de Brejnev.” (VAÏSSE, p. 165)

Compreendendo tais eventos dentro da Guerra Fria temos uma leitura não homogeneizada da URSS e dos EUA, como se ambos fossem exatamente os mesmos, mas abordando as controvérsias e embates, as mobilizações que cada um realiza do outro, e os desdobramentos de cada evento histórico, tendo assim uma visão simétrica dos eventos, que produz o seguinte esquema


Figura 2. Concepção simétrica dos eventos

Deste modo, um ensino de história simétrico se caracteriza por ser um ensino que engloba as controvérsias dentro dos períodos históricos, não homogeneizando as leituras sobre cada período ou linha teórica, mas mapeando as controvérsias. A concepção de tempo deixa de ser em formato linear para ser mais complexa, não um avanço sempre para o futuro, mas uma rede que pode voltar e avançar.

Desenvolvimento
A construção do plano de aula, contendo problemática e objetivos, a ser aplicada na turma de 2º ano na disciplina de Estágio Supervisionado IV, teve como tema “Guerra fria: entre totalitarismos e imperialismos”. Utilizou-se como apoio as discussões teóricas de Hannah Arendt (1989) sobre totalitarismos, de Almeida (2006) sobre imperialismos e expansionismo.

Partindo dessa discussão teórica, a ideia era analisar conjuntamente com os alunos através dos eventos da Guerra Fria em que momentos tais conceitos poderiam ser percebidos ou aplicados. O objetivo principal era não definir previamente um ou outro lado como o lado totalitarista, ou aquele o imperialista, mas primeiro aprender a ideia geral para depois perscrutar se se encaixava no “quebra cabeça” ou não.

Seguindo a metodologia de discussão por eixos temáticos, colocamos numa ficha de discussão os conceitos e os eventos a serem analisados. A discussão se deu por meio de aulas expositivo-dialogadas em que o estagiário dialogava com os alunos chamando a atenção para os eventos da Guerra Fria.

Uma ficha temática foi desenvolvida com base no livro de Maurice Vaïsse “As relações internacionais depois de 1945” (2013) apontando os eventos selecionados pelo estagiário dentro da Guerra Fria.


Figura 3. Ficha temática aplicada na regência: FICHA.Jpeg.
          
Ao longo da discussão fomos apresentando imagens dos eventos e debatendo com os alunos as características de cada evento dentro da Guerra Fria. A aprendizagem pôde ser mais bem verificada através das produções escritas dos alunos ao final da regência, no qual se solicitou que cada grupo de alunos reunidos selecionassem uma fonte (música, filmes, desenhos) e escrevesse sobre ela respondendo ao seguinte questionamento: “Como esta obra aborda ou constrói uma imagem sobre os EUA ou/e sobre a URSS?”

Os alunos, em sua maioria, conseguiram não particularizar os “dois lados” como um com determinadas características e outro com outras características contrárias, mas, inserindo a fonte dentro de um processo, compreenderam as controvérsias levantadas pelas obras selecionadas, como a análise realizada por um grupo da turma dos HQs em que se investigou as imagens, textos e cenas dos quadrinhos de forma a mapear os embates entre personagens e eventos, o discurso dentro dos quadrinhos e os embates entre os países.

Conclusão
A compreensão simétrica dos eventos históricos comporta uma visão mais abrangente dos processos. No exemplo citado do trabalho realizado pelo grupo de alunos da turma de 2º ano, ao perscrutar as imagens, cenas e textos dos quadrinhos, os alunos mapearam toda uma rede que a partir deles se estabelece: os produtores dos quadrinhos, a URSS, os EUA, as bombas atômicas, etc. Tal trabalho leva os alunos a duvidarem das fontes históricas, e por consequência, dos fatos históricos.

A simetria no ensino de História possibilita ainda que não se tenha uma visão pré-concebida dos processos históricos. Tal visão é determinada pelas correntes teóricas, que como afirma Thomas Khun (1998, p. 60) determinam previamente as questões que interessam ao pesquisador, e aquelas que não interessam. Desta feita, com a compreensão simétrica, primeiro se compreende os processos históricos, para depois questionar se estes se relacionam ou não com os conceitos. Assim, a aprendizagem histórica não elege “fatos” e “conceitos” para “lados”, mas mapeia tais controvérsias, o que propicia uma criticidade dos discursos, imagens e objetos.

Referências
Graduando em Licenciatura em História pela Universidade Federal de Campina Grande, Centro de Formação de Professores, Campus Cajazeiras. Foi bolsista de Iniciação à Docência pelo Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID/CFP) e atualmente é bolsista do programa Residência Pedagógica vinculado à UFCG, Campus de Cajazeiras (PB). Tem experiência em catalogação de jornais do século XIX (Jornal da União-PB). Desenvolve pesquisas na área de Ensino de História e na área da História da Ciência e da Técnica com estudos sobre a construção e implantação de tecnologias no estado da Paraíba-PB.

LATOUR, Bruno; Wooigar, Steve. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 1997.

KHUN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 5 ed. São Paulo: Editora Perspectiva S.A. 1998.

RODRIGUES, Luis Nuno. O debate sobre as origens da guerra fria.

VAÏSSE, Maurice. As relações internacionais depois de 1945Tradução: Everson Machado. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.

2 comentários:

  1. Márcia Elisa Tetê Ramos9 de abril de 2019 às 11:13

    Boa tarde! Bem original a sua pesquisa/proposta. Creio que seja interessante para o aluno perceber a multiperspectividade como própria da natureza do conhecimento histórico.
    Abraço

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  2. Olá Marcia! Creio que o principal objetivo da abordagem é perceber as controvérsias na construção do conhecimento. Se hoje há uma abordagem mais aceita que outra é pq antes houve todo um debate que ainda existe, só não é apresentado. A ideia é fazer aquilo que a ANT propõe, tanto para as ciências humanas quanto naturais: mapear as controvérsias.

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