A
RELATIVIDADE DO TEMPO HISTÓRICO
O presente ensaio tem por objetivo trabalhar a
questão de tempo histórico, tendo em vista que o fator tempo está sempre
presente nas inquirições realizadas pelos historiadores, contribuindo para
nortear suas pesquisas, sendo marcado por continuidades, rupturas e
transformações. Com o intuito de dar consistência teórica a este texto foram
utilizadas as contribuições dos historiadores franceses: Pierre Nora, François
Hartog e Antoine Prost, realizando, deste modo, um trabalho comparativo entre
as fontes utilizadas nesta pesquisa.
O tempo cíclico e a ruptura temporal
Antoine Prost nos apresenta a ideia de tempo
histórico como um ponto importante para que os historiadores formulem suas
questões ou perguntas, diferentemente do que ocorre com o sociólogo ou etnólogo,
lembrando que, a História não é uma sucessão cronológica, embora se utilize da
cronologia nos mecanismos de ensino/aprendizagem. Além de o tempo estar
atrelado às questões dos historiadores, ele está presente nos fatos e
documentos estudados por estes profissionais. Prost se vale dos estudos do
historiador Marc Bloch, reforçando a importância de uma das práticas do ofício
dos historiadores, isto é, o de entender o presente com os olhos no passado.
Prost nos mostra um marco fundador do tempo no
ocidente, ligado à existência de Jesus Cristo, marcando o surgimento da Era
Cristã, passando a existir as classificações temporais: a.C. e d.C.,
respectivamente. Desde o início dessa Era até o momento do Renascimento, o
tempo recebia seu caráter cíclico, marcado pelo tempo da natureza, ao pensarmos
nos ciclos das atividades agrícolas e no tempo religioso, tendo em seu ápice o
Juízo Final, momento do retorno de Cristo. Esta mentalidade sobre o tempo,
marcado pela repetição de eventos começa a ser questionada na Época Moderna,
conferindo à dimensão temporal um caráter multifacetado, permitindo a crença na
ocorrência de eventos únicos:
“O tempo moderno é portador, pelo contrário, de
diferenças irreversíveis; ele torna o “depois” irredutível ao “antes”. Trata-se
de um tempo fecundo, prenhe de novidade, que nunca se repete e cujos momentos
são únicos; ele supõe uma espécie de revolução mental que se fez lentamente.” [PROST,
2008, p. 101]
Prost também nos informa que, na transição da Idade
Média para a Época Moderna houve um movimento intelectual e artístico dentro do
Renascimento, conhecido por Humanismo que, num primeiro momento voltou seus
olhos para os valores artísticos da Antiguidade Clássica. Essa busca fez com
que, lentamente, os modelos antigos fossem aperfeiçoados, marcando uma ruptura
no tempo histórico, isto é, permitindo a evolução das formas artísticas e
intelectuais criadas pelo homem:
“No entanto, os humanistas, os reformadores e, de
uma forma mais geral, os homens do Renascimento continuavam a perceber um tempo
estacionário: os modernos esperavam encontrar o nível dos antigos, mas não
superá-los. Apenas em meados do século XVI, começou a emergir a ideia de um
possível progresso. Para Vasari, por exemplo – autor de uma história dos
pintores, escultores e arquitetos (1550) –, a mensagem da Antiguidade havia
sido completamente esquecida; os modernos voltaram a descobri-la, mas são
capazes de elaborar obras mais perfeitas. O retorno às fontes era uma
superação; o que havia sido círculo tornava-se espiral ascendente.” [PROST,
2008, p. 102]
Devemos lembrar também que, o Renascimento é uma
das marcas da perda de influência da Igreja Católica, não apenas nas artes e na
cultura, mas também, no comportamento coletivo. Ademais, ganha força uma nova
concepção de pensamento, expressa na ideia de progresso, existente num futuro
que está por vir. Esse pensamento passa a ser questionado com as duas Guerras
Mundiais e pela constante violação dos direitos humanos:
“O filósofo Kant insurgiu-se, por exemplo, contra a
tese de que tudo permanecerá como foi; o futuro será diferente, ou seja,
melhor. O tempo da história, nosso tempo, triunfante nesse momento, era o do
progresso.
Após o trágico século XX, sabemos que o futuro
poderá ser pior, pelo menos provisoriamente; portanto, não podemos compartilhar
o otimismo do século XIX que não deixa de subsistir, implicitamente, nas
representações de nossos contemporâneos ao sentirem dificuldade para conceber
que o progresso possa interromper-se, que o nível de vida cesse de aumentar e que
os Direitos Humanos continuem sendo ignorados por um grande número de governos.”
[PROST, 2008, p. 102]
Ao chegarmos ao Período Contemporâneo, foi possível
constatar a grande transformação técnológica, atrelada ao desenvolvimento dos
meios de comunicação de massa e ao consumismo exarcebado, em que, é difundido o
apego ao presente, menosprezando o passado (tido como morte). Esse fenômeno foi
denominado por François Hartog, como presentismo: “Eis aqui algumas
referências, sobretudo literárias, para ajudar a abordar este fenômeno massivo,
que dá sua fisionomia própria ao século XX. Contra o passado, que também é a
morte, privilegia-se a vida e o presente”. [HARTOG, 1996, p. 133]
Em outras palavras, trata-se de um movimento social
de valorização da juventude e de aspectos modernos da sociedade francesa ou
europeia, em detrimento do que era considerado como antigo, passando a existir
uma negação do tempo transcorrido:
“[...] a valorização crescente da juventude nas
sociedades que já começavam a envelhecer; todas as técnicas de supressão do
tempo, graças ao desenvolvimento dos meios de comunicação (a comunicação dita
em “tempo real”). Qualquer um poderia facilmente completar o repertório de
comportamentos que tendem a uma negação do tempo.” [HARTOG, 1996, p. 135-136]
O interesse em apagar aspectos de um passado
remoto, valorizando sempre o que é jovem ou atual fez surgir o interesse de
proteger espaços onde havia resquícios de um tempo longínquo, que se encontram
materializados no presente, tendo em Pierre Nora um grande interlocutor desse
momento histórico:
“Nora perceberia igualmente “o advento rápido do
presente histórico”. Conscientemente, o historiador do presente faz surgir o
passado no presente (no lugar de fazer inconscientemente surgir o presente no
passado) [...]. Nora sempre recusou o princípio de uma ruptura estrita entre
passado e presente como base da história moderna.” [HARTOG, 1996, p. 136-137]
Conforme
ilustra Nora, a possibilidade do desaparecimento de um modo de vida ou de
representações culturais condiciona a criação dos lugares da memória:
“O
sentimento de um desaparecimento rápido e definitivo combina-se à preocupação
com o exato significado do presente e com a incerteza do futuro para dar ao
mais modesto dos vestígios, ao mais humilde testemunho a dignidade virtual do
memorável.” [NORA, 1993, p. 12]
Em
outras palavras, a eminência de desaparecimentos de modos de vida ou de traços
culturais de uma sociedade, como a francesa, acarretou no reconhecimento dos
lugares da memória, sendo estes espaços reconhecidos pelo seu valor, seja
histórico, seja artístico, como traços culturais de uma coletividade, amparados
por segmentos da sociedade civil e da Academia. Enquanto o contexto atual
provocou a sensibilização social, em prol dos resquícios do passado,
materializados no presente, conforme ilustram Nora e Hartog, a fim de fazer
frente a um movimento que negava o passado em favor da modernidade, podemos
notar que, em dada medida, no Renascimento ocorreu um movimento de resgate dos
valores da Antiguidade, com o intuito de fazer frente à cultura medieval. Um
ponto que não apenas deixou de considerar Deus como o centro do Universo
(questionando a ideia de tempo cíclico, marcada pelo Juízo Final), mas também,
abriu espaço para que a cultura renascentista, por meio do humanismo,
produzisse obras que superassem as características da antiguidade.
Um
aspecto crucial a ser levado em consideração é a relação de poder, existente
entre as diversas memórias coletivas existentes numa sociedade, como a da França,
promovendo o enaltecimento de algumas e o silenciamento de outras. Sem nos
esquecermos de que as diferentes memórias estão envoltas na dimensão de tempo
histórico que, segundo Prost: “O tempo histórico, como sendo o tempo das
coletividades, Estados e grupos sociais” (PROST, 2008, p. 96). Por termos como
foco o entendimento do presente com os olhos no passado, devemos ter em mente
que valores e pensamentos sociais mudam com o decorrer da época e que, cabe ao
historiador realizar seus estudos, tendo em vista as marcas deixadas pelo
tempo.
Referências
Luciano Araujo Monteiro é mestrando pelo
departamento de História da UNIFESP, pós-graduando em Gestão Pública pela
UNIFESP, graduado em História (licenciatura plena) pela UNIFESP. Atua como
assistente de gestão e políticas públicas pela Autarquia Hospitalar Municipal
(AHM).
HARTOG, François. Tempo e História: como escrever a
história da França hoje? História Social,
Campinas, n. 3, 1996, p. 127-154.
NORA, Pierre. Entre Memória e
História: a problemática dos lugares. Projeto
História, São Paulo, n. 10, dez. 1993, p. 7-28.
PROST, Antonie. “Os Tempos na História”. In:___Doze
lições sobre a História. Belo Horizonte: Autêntica. 2008.
Olá Luciano. Este tema sobre o tempo histórico me interessa bastante. É bom ver que há pessoas pesquisando sobre isso. Achei teu texto bastante claro, contudo, algo me incomoda. No texto, explicas que quem estava no séc. XVI, faz uma espécie de revisitação. Revisita-se a Antiguidade Clássica para atingir um novo patamar. Se tínhamos uma espécie de hegemonia de concepções e mentalidades numa determinada cultura onde a ideia de ciclo é predominante, a que atribuir, se podermos inferir sobre isso agora, esta nova ideia de progresso, ou etapas, desta sociedade? Obrigado.
ResponderExcluirNewton Pinto Cordeiro.
Olá Newton. Fico contente que tenha se interessado pelo meu texto. Na verdade, a ideia de progresso não foi dada, mas, se estruturou a partir de um processo histórico, tendo como grande estimulante às expansões árabes. Embora não seja amplamente divulgado em sala de aula, os árabes foram responsáveis pela tradução de obras gregas e responsáveis pela sua disseminação no continente europeu. Foi um momento em que a cultura da Antiguidade passou a ser revisitada e valorizada em detrimento da cultura Medieval. Como historiadores, devemos ter em vista que, apesar do tempo na Idade Média ter sido marcado pelo seu teor cíclico, tendo como grande marco a espera do Juízo Final, o tempo histórico (que estrutura a nossa atividade) não é marcado apenas por continuidades, mas também, por rupturas e transformações.
ExcluirEspero ter podido contribuir de alguma forma.
Abraço
Att. Luciano Araujo Monteiro
Bom texto!
ResponderExcluirUma pergunta: No momento que em vivemos, altamente tecnológico, com informações e dados disseminados à exaustão, de que forma é possível delimitar um tempo histórico ou um momento de ruptura?
Obrigado.
Att,
Rodrigo Jacomo Teixeira
Olá Rodrigo.
ResponderExcluirEsta é uma pergunta bem oportuna. Eu creio que a delimitação de um tempo histórico ou período de ruptura ocorrem a partir do momento em que são detectadas contradições e reflexões nos movimentos existentes na sociedade civil. Por exemplo, Hartog nos expõe o grande dinamismo da produção e do fluxo de informações, porém, essa mesma propagação (de forma acelerada) do conhecimento trás como uma possível consequência o apagamento de memórias sociais coletivas ou tradicionais. A partir desse eminente desaparecimento de memórias sociais, contraditoriamente é criado o desejo de preservação, seja de memórias de grupos com pouca representatividade política, seja de símbolos edificados de determinado grupo. Podemos pensar nessa reflexão como uma ruptura que provoca a necessidade de criação dos lugares da memória, que estão materializados em instituições como: Arquivos, Bibliotecas, Monumentos, ou ressignificados em símbolos edificados. Para esta última situação, podemos usar como exemplo a cidade de São Paulo, pois seu vertiginoso crescimento passou a promover a destruição física de seu imenso parque industrial, apagando a memória do movimento operário na capital paulistana. Por esse motivo, os órgãos de preservação de patrimônio determinaram que, em caso de destruição de uma antiga indústria, a fim de criar um novo empreendimento, só seria possível se fosse mantida a chaminé da fábrica, para indicar que, em determinado espaço houve uma indústria, permitindo o não esquecimento dessa memória social.
Luciano Araujo Monteiro