Karoliny Silene Silva Matos e Fábio Alves dos Santos


ALFABETIZAÇÃO HISTÓRICA: ESTADO DA ARTE EM EVENTOS CIENTÍFICOS NA ÁREA DE HISTÓRIA


Esta comunicação apresenta os resultados parciais do plano de trabalho denominado Alfabetização Histórica: estado da arte em eventos científicos na área de História. Tal plano faz parte do projeto Alfabetização Histórica: em busca de um reposicionamento disciplinar diante das reformas curriculares, do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) da Universidade Federal de Sergipe. Durante a realização dessa pesquisa, busca-se identificar a produção apresentada nos eventos com foco em Alfabetização Histórica, tabular o índice de frequência do tema ao longo dos eventos e analisar as perspectivas interpretativas e os referenciais teóricos mobilizados na produção identificada.

No geral, o projeto de pesquisa visa analisar a contribuição do conceito de Alfabetização Histórica para as questões apresentadas ao Ensino de História a partir das reformulações curriculares recentes da escola no Brasil. Entende-se que estas novas configurações impõem a necessidade de repensar a prática docente, a elaboração de materiais didáticos, os processos avaliativos e a formação inicial e continuada de professores (tanto de História, bem como de Pedagogia).

O currículo escolar brasileiro tem passado por reformulações recentes que se materializaram pela primeira vez no segundo semestre de 2015. Naquela oportunidade foi publicizada para consulta pública a versão beta da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A partir deste momento foram abertas à participação pública ainda outras duas versões e o texto final foi aprovado em dezembro de 2017. Salvo todas as polêmicas envolvendo tanto o processo de consultas, quanto o resultado final apresentado, o fato é que a BNCC é uma realidade.

Esta materialização final traz impactos aos sistemas de ensino, para os quais impõe-se a demanda de formulação de normativas educacionais que atendam ao novo modelo, às instituições públicas e privadas de formação inicial e continuada de professores, aos autores de livros didáticos e, claro, aos docentes que irão organizar seu trabalho cotidiano tendo como lastro organizacional de suas práticas estas determinações. Logo, a promulgação da BNCC requer reflexões e ações de todos os envolvidos no processo ensino-aprendizagem.

No que concerne ao ensino de História, o nível de polemização foi dos mais altos. Quando da publicação da primeira versão do texto, emararam das mais diversas frentes duras críticas à proposta apresentada. Constava ali uma perspectiva que mudaria consideravelmente aquilo que se entende por ensinar e aprender História. De concreto, restou a destituição do grupo original de intelectuais que a formularam e as novas versões trazidas a público coadunavam melhor com o consenso hegemônico no campo e no senso comum.

Todavia, a versão final do documento nacional não minimiza o incomodo acerca do lugar da História, e de seus profissionais docentes, na formação do povo brasileiro. Muito pelo contrário, haja vista o fato de que a Base Nacional para o Ensino Médio – mudança que foi postergada na BNCC – estabelece em suas primeiras versões que “disciplinas” são apenas Língua Portuguesa e Matemática. Os demais campos de conhecimento, e seus profissionais docentes (em diferentes níveis de atuação) estão a se perguntar como se enquadrarão neste novo modelo.

Diante de tais questões, o projeto do qual este estudo faz parte caracteriza-se como um esforço dentro do campo da Educação Histórica. Como aponta GERMINARI (2011) em seu levantamento, esta área de pesquisa no Brasil teve sua constituição iniciada ainda nos idos dos anos 1980. Uma das primeiras ações no sentido de discutir o Ensino de História teria sido a inclusão nos quadros de sócios da ANPUH de professores de diferentes níveis de ensino que não apenas o superior.

Segundo o mesmo levantamento, as investigações acerca da Cognição Histórica remontam a experiências na Inglaterra, Estados Unidos, Canadá e Portugal. Neste, destacam-se os estudos realizados por Isabel Barca, referencial bastante recorrente no Brasil. Este campo de pesquisas, que toma como objeto o ensino-aprendizagem de História, fundamentou-se na Psicologia, Sociologia, Antropologia, Didática e, obviamente, História. Atualmente, a Educação Histórica apresenta uma fundamentação científica própria, baseada grandemente na Epistemologia da História.

Quando se trata especificamente da Alfabetização Histórica, os poucos estudos no Brasil voltados para este objeto reportam-se à leitura portuguesa no campo. Disto resulta, por exemplo, o uso mais comum do termo literacia histórica, tradução em Portugal para historical literacy, como esclarece STAMATTO (2009) em um dos raros trabalhos que se dedicam a esta investigação no Brasil. Ainda segundo a autora, este é um ramo da pesquisa em Ensino de História que tem como referencial teórico fundamental as proposições do inglês Peter Lee.

Deste modo, um estudo acerca da Alfabetização Histórica justifica-se pela necessidade de compreender de qual modo tal abordagem pode contribuir para o repensar das práticas de ensino de História nas escolas brasileiras. Mas não só, uma vez que, como já destacado, as reformas curriculares trazem implicações para a produção de material didático, formação de professores, estratégias de avaliação. Cabe então interrogar qual é o estado da arte sobre o assunto, quais as estratégias adotadas por autores e editoras, quais os movimentos institucionais para adequação dos Projetos Pedagógicos de cursos de Licenciatura, as ações implementadas por gestores públicos. No plano nacional já há algumas iniciativas acadêmicas, ainda que esparsas, de compreensão deste fenômeno. Este projeto constitui uma contribuição a este esforço científico.

O ensino de História nos anos iniciais do Ensino Fundamental contribui significativamente para que a criança comece a desenvolver, além de outros aspectos, a noção de temporalidade. Dessa forma, esse ensino também deve envolver as crianças de forma que elas valorizem a sua própria história de vida. De acordo com Pereira (2010):

“Conforme os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs (BRASIL, 1997), um dos objetivos mais relevantes quanto ao ensino de História relaciona-se à questão da identidade. É de grande importância que os estudos de História estejam constantemente pautados na construção da noção de identidade, através do estabelecimento de relações entre identidades individuais, sociais. ” (PEREIRA, 2010, p. 2)

O conhecimento histórico deve estar ligado à vida de quem aprende, visto que o papel da história é nos fornecer uma noção a respeito da nossa própria identidade, de modo a facilitar e estimular a nossa cooperação com outras culturas, outras pessoas e outras nações. É necessário levar em consideração quais são as ideias que os alunos já possuem sobre a história, isso porque muitos alunos veem o passado como algo permanente. Ou têm a ideia de que só podemos ter certeza que determinado fato ocorreu se vemos ou fazemos, ou seja, conhecimento pela própria experiência. Ou, ainda, que a história é algo que ocorre de forma individualizada, com eventos particulares e desconexos.

De acordo com o Lee, os indivíduos que conhecem algo sobre a educação histórica admitem que a história é mais do que o conhecimento de eventos passados. Dessa forma, “[...] o aprendizado histórico não pode ser somente um processo de aquisição da história como fatos “objetivos”; ele envolve também conhecimento histórico, começando “a atuar como regra nos arranjos mentais de um sujeito. ” (RÜSEN apud LEE, 2006, p. 133)

Aprender história significa aprender a ver o mundo de outras formas, novas e mais complexas. Somente quando as crianças entendem que as pessoas que viveram no passado não pensavam da mesma maneira que pensamos no presente, é que a história passa a ser significativamente possível para elas. “A aquisição que falta é um quadro do passado que permita aos alunos adquirir uma grande imagem do passado em que o presente e novos encontros com o passado possam caber. ” (LEE, 2016, p. 125)

A importância dos quadros estruturais se dá pelo fato de que, por meio deles, os alunos poderão perceber que nem todo evento é uma mudança, e que o passado não é a consequência de escolhas determinadas e ações individuais. Além disso, as mudanças passarão a ser vistas como algo que também ocorre após um longo e gradual desenvolvimento, e que, por vezes, não foram intencionadas por ninguém.

Peter Lee, no texto Literacia histórica e história transformativa, traz o conceito de parelthontectomy, que seria a separação entre o presente e o que veio antes. Só que para ele essa separação é ilusória, visto que muito do que pensamos a respeito do presente e do futuro está ligado ao passado, e fazemos essa ligação mesmo que de maneira inconsciente. Ainda segundo o autor:

“É importante salientar a natureza transformativa da história porque, sem qualquer questionamento de que a história modifica nossa visão sobre o presente e o futuro, o conhecimento do passado é considerado como sendo o acúmulo de fatos ou histórias que estão necessariamente confinados a esse passado e, portanto, são irrelevantes para qualquer situação no presente. ” (LEE, 2016, p. 130)

Assim, entende-se que a Educação Histórica tem o papel de desenvolver e expandir o aparato conceitual dos discentes, e não apenas confirmar as maneiras de pensar que eles já têm.

Para fins deste estudo, inicialmente foi realizado um pequeno levantamento bibliográfico, a fim de adentrar a temática, compreendendo algumas ideias sobre a Alfabetização Histórica e o ensino de História nos anos iniciais do Ensino Fundamental conforme a Base Nacional Comum Curricular. Foram lidos e fichados os textos: Alfabetização Histórica em materiais didáticos: significados e usos, de Maria Inês Sucupira Stamatto; Em direção a um conceito de literacia histórica e Literacia histórica e história transformativa, de Peter Lee. Além disso, também foi utilizado um trecho da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), referente ao ensino de História nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Iniciou-se, também, a procura por artigos científicos a respeito da Alfabetização Histórica em eventos de História, e a tabulação dos mesmos em uma planilha no Excel.

No momento os textos estão sento procurados nos Simpósios Nacionais de História da ANPUH, com algumas dificuldades como a falta da ferramenta para buscar textos por palavras-chave – fazendo com que seja preciso ver título por título. Os artigos encontrados são organizados em uma planilha no Excel, sendo localizados o evento em que foi publicado, o ano de publicação, a referência bibliográfica, o objeto do texto, o foco ou situação, a base teórica utilizada, e as afirmações encontradas.

Dos três Simpósios Nacionais de História nos quais ocorreu a busca por textos que denotassem sobre a Alfabetização ou Educação Histórica, apenas doze artigos a respeito dessa temática foram encontrados. Esse fato demonstra que ainda são poucos os trabalhos realizados nessa área de pesquisa, visto a quantidade de textos que são publicados nesses simpósios.

Referências

Karoliny Silene Silva Matos é graduanda do Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia, pela Universidade Federal de Sergipe.

Fábio Alves dos Santos é professor do Departamento de Educação da Universidade Federal de Sergipe. Mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e doutor pela Universidade Federal de Sergipe.
                                                                         
BARCA, Isabel. Literacia e consciência histórica. Educar em Revista, Curitiba, Especial, p. 93-112, 2006.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular – BNCC. Disponível em <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/> Acesso em 28 de julho de 2018.

Ensino de história nos anos iniciais do ensino fundamental. Disponível em<http://www.histedbr.fe.unicamp.br/acer_histedbr/jornada/jornada10/_files/VOvTHqqQ.pdf>Acesso em 12 de julho de 2018.

GERMINARI, Geyso D. Educação Histórica: a constituição de um campo de pesquisa. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. 42, p. 54-70, jun.2011.
LEE, Peter. Em direção a um conceito de literacia histórica. Educar em Revista, Curitiba, Especial, p. 131-150, 2006.

LEE, Peter. Literacia histórica e história transformativa. Educar em Revista, Curitiba, n. 60, p. 107-146, 2016.

STAMATTO, Inês. Alfabetização histórica em materiais didáticos: significados e usos. Anais... ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA. ANPUH. Fortaleza, 2009.



4 comentários:

  1. Cláudio Correia de Oliveira Neto11 de abril de 2019 às 09:00

    Parabéns a autora e ao seu orientador pela relevante pesquisa e contribuição para esse campo em crescimento que é a Alfabetização Histórica e o Letramento.
    Tenho alguns apontamentos para pensarmos juntos: primeiro o campo da educação que se dedica mais tempo e tem vasta produção sobre alfabetização faz uma clara diferença entre ALFABETIZAR e LETRAR, que são processos diferentes mas correlatos. Devemos da História também adotar esta diferenciação?

    Também pesquiso na área e tenho um trabalho produzido, publicado em evento local. Neste artigo eu pesquisei o conceito de Letramento na área da história, e fiz procedimento similar aos de vocês. Ao ler a produção sobre letramento na área de história cheguei a conclusão que havia na verdade 3 conceitos distintos no campo, e que essa diferenciação ocorria devido o local de origem na discussão: se o autor fosse da pedagogia havia um conceito, se fosse da história havia outro conceito. A conclusão da minha pesquisa diferenciou os seguintes conceitos: LETRAMENTO, LETRAMENTO EM HISTÓRIA E LETRAMENTO HISTÓRICO. Letramento seria domínio das práticas sociais de leitura e escrita. Letramento em história, que vem do campo da pedagogia, seria auxiliar os estudantes a dominarem gêneros e leitura especifica da história que está centrada na historicidade destas fontes. E letramento histórico, que vem das discussões da história, seria habilidade adquirida pelos alunos que se tornam capazes de utilizar uma estrutura útil de história para ler, interpretar, analisar de forma crítica, fundamentada e argumentativa, produzindo projetos de futuro e/ou redefinindo conhecimento do passado nas diversificadas situações sociais onde as narrativas históricas em suas variadas forma se apresentam e podem ser rearranjadas conforme interesses e carências de orientação temporal.
    Será que ocorre um fenômeno parecido com eu encontrei em letramento, com o conceito de alfabetização?
    Cláudio Correia de Oliveira Neto

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    1. Olá Cláudio, obrigado pela intervenção. Sobre sua questão, é importante destacar que a literatura brasileira na área de Ensino de História tem preferido utilizar o tempo leteracia histórica, numa tradução direta de historical literacy, que nada mais é, no original, que alfabetização histórica. Isto se deve ao fato de que alfabetização histórica já remete ao processo de construção de uma aprendizagem que proporcione uma leitura crítica do mundo, e não apenas a memorização de elementos vagos de História. Neste sentido, não há porque adotar uma distinção, em língua portuguesa, dos dois termos, ambos estão adequados.

      Fábio Alves dos Santos

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  2. Ótima pesquisa! Realmente os estudos feitos sobre o ensino e aprendizagem na disciplina de história (Alfabetização histórica) nos anos inciais são escassos, e principalmente, a discussão do mesmo dentro das licenciaturas, seja ela de pedagogia ou de história, junto aos futuros professores. Além dessa pesquisa ser extremamente relevante, outros questionamentos também devem ser feitos, como a quem deve, ou melhor, como os especialistas na área de história podem contribuir/dialogar para/com os docentes que estão responsáveis pela formação inicial, sabendo que, segundo Rusen a Didática da História enquanto disciplina especializada, almeja o saber histórico, sendo este resultado de uma síntese entre experiência e interpretação, operado pelo ser humano.

    Angêlica Rita de Araújo

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    1. Olá Angélica, obrigado pela contribuição ao debate. De fato, é preciso que dentro dos cursos de História se rompam as barreiras referentes ao ensino, afinal dentro de uma idéia de Educação Histórica a Didática é parte constituinte do saber histórico. Já temos acompanhado mudanças significativas neste cenário, mas ainda há muito o que se fazer para que está compreensão seja efetivamente uma baliza na formação dos professores de história para que haja mais diálogo com a atuação de outros profissionais como os que atuam nos Anos Iniciais.

      Fábio Alves dos Santos

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