ALFABETIZAÇÃO HISTÓRICA: ESTADO DA ARTE EM EVENTOS
CIENTÍFICOS NA ÁREA DE HISTÓRIA
Esta comunicação apresenta os resultados parciais do plano de trabalho
denominado Alfabetização Histórica: estado
da arte em eventos científicos na área de História. Tal plano faz parte do
projeto Alfabetização Histórica: em busca
de um reposicionamento disciplinar diante das reformas curriculares, do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) da
Universidade Federal de Sergipe. Durante a realização dessa pesquisa, busca-se
identificar a produção apresentada nos eventos com foco em Alfabetização
Histórica, tabular o índice de frequência do tema ao longo dos eventos e
analisar as perspectivas interpretativas e os referenciais teóricos mobilizados
na produção identificada.
No geral, o
projeto de pesquisa visa analisar a contribuição do conceito de Alfabetização
Histórica para as questões apresentadas ao Ensino de História a partir das
reformulações curriculares recentes da escola no Brasil. Entende-se que estas
novas configurações impõem a necessidade de repensar a prática docente, a
elaboração de materiais didáticos, os processos avaliativos e a formação
inicial e continuada de professores (tanto de História, bem como de Pedagogia).
O currículo
escolar brasileiro tem passado por reformulações recentes que se materializaram
pela primeira vez no segundo semestre de 2015. Naquela oportunidade foi
publicizada para consulta pública a versão beta da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC). A partir deste momento foram abertas à participação pública
ainda outras duas versões e o texto final foi aprovado em dezembro de 2017.
Salvo todas as polêmicas envolvendo tanto o processo de consultas, quanto o resultado
final apresentado, o fato é que a BNCC é uma realidade.
Esta
materialização final traz impactos aos sistemas de ensino, para os quais
impõe-se a demanda de formulação de normativas educacionais que atendam ao novo
modelo, às instituições públicas e privadas de formação inicial e continuada de
professores, aos autores de livros didáticos e, claro, aos docentes que irão
organizar seu trabalho cotidiano tendo como lastro organizacional de suas
práticas estas determinações. Logo, a promulgação da BNCC requer reflexões e
ações de todos os envolvidos no processo ensino-aprendizagem.
No que concerne
ao ensino de História, o nível de polemização foi dos mais altos. Quando da
publicação da primeira versão do texto, emararam das mais diversas frentes
duras críticas à proposta apresentada. Constava ali uma perspectiva que mudaria
consideravelmente aquilo que se entende por ensinar e aprender História. De
concreto, restou a destituição do grupo original de intelectuais que a
formularam e as novas versões trazidas a público coadunavam melhor com o
consenso hegemônico no campo e no senso comum.
Todavia, a
versão final do documento nacional não minimiza o incomodo acerca do lugar da
História, e de seus profissionais docentes, na formação do povo brasileiro.
Muito pelo contrário, haja vista o fato de que a Base Nacional para o Ensino
Médio – mudança que foi postergada na BNCC – estabelece em suas primeiras
versões que “disciplinas” são apenas Língua Portuguesa e Matemática. Os demais
campos de conhecimento, e seus profissionais docentes (em diferentes níveis de
atuação) estão a se perguntar como se enquadrarão neste novo modelo.
Diante de tais
questões, o projeto do qual este estudo faz parte caracteriza-se como um
esforço dentro do campo da Educação Histórica. Como aponta GERMINARI (2011) em
seu levantamento, esta área de pesquisa no Brasil teve sua constituição
iniciada ainda nos idos dos anos 1980. Uma das primeiras ações no sentido de
discutir o Ensino de História teria sido a inclusão nos quadros de sócios da ANPUH
de professores de diferentes níveis de ensino que não apenas o superior.
Segundo o mesmo
levantamento, as investigações acerca da Cognição Histórica remontam a
experiências na Inglaterra, Estados Unidos, Canadá e Portugal. Neste,
destacam-se os estudos realizados por Isabel Barca, referencial bastante
recorrente no Brasil. Este campo de pesquisas, que toma como objeto o
ensino-aprendizagem de História, fundamentou-se na Psicologia, Sociologia,
Antropologia, Didática e, obviamente, História. Atualmente, a Educação
Histórica apresenta uma fundamentação científica própria, baseada grandemente
na Epistemologia da História.
Quando se trata
especificamente da Alfabetização Histórica, os poucos estudos no Brasil
voltados para este objeto reportam-se à leitura portuguesa no campo. Disto
resulta, por exemplo, o uso mais comum do termo literacia histórica, tradução
em Portugal para historical literacy, como esclarece STAMATTO (2009) em um dos
raros trabalhos que se dedicam a esta investigação no Brasil. Ainda segundo a
autora, este é um ramo da pesquisa em Ensino de História que tem como
referencial teórico fundamental as proposições do inglês Peter Lee.
Deste modo, um
estudo acerca da Alfabetização Histórica justifica-se pela necessidade de
compreender de qual modo tal abordagem pode contribuir para o repensar das
práticas de ensino de História nas escolas brasileiras. Mas não só, uma vez
que, como já destacado, as reformas curriculares trazem implicações para a
produção de material didático, formação de professores, estratégias de
avaliação. Cabe então interrogar qual é o estado da arte sobre o assunto, quais
as estratégias adotadas por autores e editoras, quais os movimentos
institucionais para adequação dos Projetos Pedagógicos de cursos de
Licenciatura, as ações implementadas por gestores públicos. No plano nacional
já há algumas iniciativas acadêmicas, ainda que esparsas, de compreensão deste
fenômeno. Este projeto constitui uma contribuição a este esforço científico.
O ensino de História nos anos iniciais do Ensino Fundamental contribui
significativamente para que a criança comece a desenvolver, além de outros
aspectos, a noção de temporalidade. Dessa forma, esse ensino também deve
envolver as crianças de forma que elas valorizem a sua própria história de
vida. De acordo com Pereira (2010):
“Conforme
os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs (BRASIL, 1997), um dos objetivos mais
relevantes quanto ao ensino de História relaciona-se à questão da identidade. É
de grande importância que os estudos de História estejam constantemente
pautados na construção da noção de identidade, através do estabelecimento de
relações entre identidades individuais, sociais. ” (PEREIRA, 2010, p. 2)
O conhecimento histórico deve estar ligado à vida de quem aprende,
visto que o papel da história é nos fornecer uma noção a respeito da nossa
própria identidade, de modo a facilitar e estimular a nossa cooperação com
outras culturas, outras pessoas e outras nações. É necessário levar em
consideração quais são as ideias que os alunos já possuem sobre a história,
isso porque muitos alunos veem o passado como algo permanente. Ou têm a ideia
de que só podemos ter certeza que determinado fato ocorreu se vemos ou fazemos,
ou seja, conhecimento pela própria experiência. Ou, ainda, que a história é
algo que ocorre de forma individualizada, com eventos particulares e
desconexos.
De acordo com o Lee, os indivíduos que conhecem algo sobre a educação
histórica admitem que a história é mais do que o conhecimento de eventos
passados. Dessa forma, “[...] o aprendizado histórico não pode ser somente um
processo de aquisição da história como fatos “objetivos”; ele envolve também
conhecimento histórico, começando “a atuar como regra nos arranjos mentais de
um sujeito. ” (RÜSEN apud LEE, 2006, p. 133)
Aprender história significa aprender a ver o mundo de outras formas,
novas e mais complexas. Somente quando as crianças entendem que as pessoas que
viveram no passado não pensavam da mesma maneira que pensamos no presente, é
que a história passa a ser significativamente possível para elas. “A aquisição que falta é um quadro do
passado que permita aos alunos adquirir uma grande imagem do passado em que o
presente e novos encontros com o passado possam caber. ” (LEE, 2016, p. 125)
A importância dos quadros estruturais se dá pelo fato de que, por meio
deles, os alunos poderão perceber que nem todo evento é uma mudança, e que o
passado não é a consequência de escolhas determinadas e ações individuais. Além
disso, as mudanças passarão a ser vistas como algo que também ocorre após um
longo e gradual desenvolvimento, e que, por vezes, não foram intencionadas por
ninguém.
Peter Lee, no texto Literacia
histórica e história transformativa, traz o conceito de parelthontectomy,
que seria a separação entre o presente e o que veio antes. Só que para ele essa
separação é ilusória, visto que muito do que pensamos a respeito do presente e
do futuro está ligado ao passado, e fazemos essa ligação mesmo que de maneira
inconsciente. Ainda segundo o autor:
“É
importante salientar a natureza transformativa da história porque, sem qualquer
questionamento de que a história modifica nossa visão sobre o presente e o
futuro, o conhecimento do passado é considerado como sendo o acúmulo de fatos
ou histórias que estão necessariamente confinados a esse passado e, portanto,
são irrelevantes para qualquer situação no presente. ” (LEE, 2016, p. 130)
Assim, entende-se que a Educação Histórica tem o papel de desenvolver e
expandir o aparato conceitual dos discentes, e não apenas confirmar as maneiras
de pensar que eles já têm.
Para fins deste estudo, inicialmente foi realizado um pequeno
levantamento bibliográfico, a fim de adentrar a temática, compreendendo algumas
ideias sobre a Alfabetização Histórica e o ensino de História nos anos iniciais
do Ensino Fundamental conforme a Base Nacional Comum Curricular. Foram lidos e
fichados os textos: Alfabetização
Histórica em materiais didáticos: significados e usos, de Maria Inês
Sucupira Stamatto; Em direção a um
conceito de literacia histórica e Literacia
histórica e história transformativa, de Peter Lee. Além disso, também foi
utilizado um trecho da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), referente ao
ensino de História nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Iniciou-se, também,
a procura por artigos científicos a respeito da Alfabetização Histórica em
eventos de História, e a tabulação dos mesmos em uma planilha no Excel.
No momento os textos estão sento procurados nos Simpósios Nacionais de
História da ANPUH, com algumas dificuldades como a falta da ferramenta para
buscar textos por palavras-chave – fazendo com que seja preciso ver título por
título. Os artigos encontrados são organizados em uma planilha no Excel, sendo
localizados o evento em que foi publicado, o ano de publicação, a referência
bibliográfica, o objeto do texto, o foco ou situação, a base teórica utilizada,
e as afirmações encontradas.
Dos três Simpósios Nacionais de História nos quais ocorreu a busca por
textos que denotassem sobre a Alfabetização ou Educação Histórica, apenas doze
artigos a respeito dessa temática foram encontrados. Esse fato demonstra que
ainda são poucos os trabalhos realizados nessa área de pesquisa, visto a
quantidade de textos que são publicados nesses simpósios.
Referências
Karoliny Silene Silva Matos é graduanda do Curso de Licenciatura Plena
em Pedagogia, pela Universidade Federal de Sergipe.
Fábio Alves dos Santos é professor do Departamento de Educação da
Universidade Federal de Sergipe. Mestre em Educação pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, e doutor pela Universidade Federal de
Sergipe.
BARCA, Isabel. Literacia e consciência histórica. Educar em Revista,
Curitiba, Especial, p. 93-112, 2006.
BRASIL. Ministério da Educação. Base
Nacional Comum Curricular – BNCC. Disponível em <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/> Acesso em 28 de julho de 2018.
Ensino de
história nos anos iniciais do ensino fundamental. Disponível em<http://www.histedbr.fe.unicamp.br/acer_histedbr/jornada/jornada10/_files/VOvTHqqQ.pdf>Acesso
em 12 de julho de 2018.
GERMINARI, Geyso D. Educação Histórica: a constituição de um campo de
pesquisa. Revista HISTEDBR On-line, Campinas, n. 42, p. 54-70, jun.2011.
LEE,
Peter. Em direção a um conceito de literacia histórica. Educar em Revista, Curitiba,
Especial, p. 131-150, 2006.
LEE, Peter. Literacia histórica e história
transformativa. Educar em Revista, Curitiba, n. 60, p. 107-146, 2016.
STAMATTO, Inês. Alfabetização histórica em materiais didáticos:
significados e usos. Anais... ANPUH – XXV SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA. ANPUH.
Fortaleza, 2009.
Parabéns a autora e ao seu orientador pela relevante pesquisa e contribuição para esse campo em crescimento que é a Alfabetização Histórica e o Letramento.
ResponderExcluirTenho alguns apontamentos para pensarmos juntos: primeiro o campo da educação que se dedica mais tempo e tem vasta produção sobre alfabetização faz uma clara diferença entre ALFABETIZAR e LETRAR, que são processos diferentes mas correlatos. Devemos da História também adotar esta diferenciação?
Também pesquiso na área e tenho um trabalho produzido, publicado em evento local. Neste artigo eu pesquisei o conceito de Letramento na área da história, e fiz procedimento similar aos de vocês. Ao ler a produção sobre letramento na área de história cheguei a conclusão que havia na verdade 3 conceitos distintos no campo, e que essa diferenciação ocorria devido o local de origem na discussão: se o autor fosse da pedagogia havia um conceito, se fosse da história havia outro conceito. A conclusão da minha pesquisa diferenciou os seguintes conceitos: LETRAMENTO, LETRAMENTO EM HISTÓRIA E LETRAMENTO HISTÓRICO. Letramento seria domínio das práticas sociais de leitura e escrita. Letramento em história, que vem do campo da pedagogia, seria auxiliar os estudantes a dominarem gêneros e leitura especifica da história que está centrada na historicidade destas fontes. E letramento histórico, que vem das discussões da história, seria habilidade adquirida pelos alunos que se tornam capazes de utilizar uma estrutura útil de história para ler, interpretar, analisar de forma crítica, fundamentada e argumentativa, produzindo projetos de futuro e/ou redefinindo conhecimento do passado nas diversificadas situações sociais onde as narrativas históricas em suas variadas forma se apresentam e podem ser rearranjadas conforme interesses e carências de orientação temporal.
Será que ocorre um fenômeno parecido com eu encontrei em letramento, com o conceito de alfabetização?
Cláudio Correia de Oliveira Neto
Olá Cláudio, obrigado pela intervenção. Sobre sua questão, é importante destacar que a literatura brasileira na área de Ensino de História tem preferido utilizar o tempo leteracia histórica, numa tradução direta de historical literacy, que nada mais é, no original, que alfabetização histórica. Isto se deve ao fato de que alfabetização histórica já remete ao processo de construção de uma aprendizagem que proporcione uma leitura crítica do mundo, e não apenas a memorização de elementos vagos de História. Neste sentido, não há porque adotar uma distinção, em língua portuguesa, dos dois termos, ambos estão adequados.
ExcluirFábio Alves dos Santos
Ótima pesquisa! Realmente os estudos feitos sobre o ensino e aprendizagem na disciplina de história (Alfabetização histórica) nos anos inciais são escassos, e principalmente, a discussão do mesmo dentro das licenciaturas, seja ela de pedagogia ou de história, junto aos futuros professores. Além dessa pesquisa ser extremamente relevante, outros questionamentos também devem ser feitos, como a quem deve, ou melhor, como os especialistas na área de história podem contribuir/dialogar para/com os docentes que estão responsáveis pela formação inicial, sabendo que, segundo Rusen a Didática da História enquanto disciplina especializada, almeja o saber histórico, sendo este resultado de uma síntese entre experiência e interpretação, operado pelo ser humano.
ResponderExcluirAngêlica Rita de Araújo
Olá Angélica, obrigado pela contribuição ao debate. De fato, é preciso que dentro dos cursos de História se rompam as barreiras referentes ao ensino, afinal dentro de uma idéia de Educação Histórica a Didática é parte constituinte do saber histórico. Já temos acompanhado mudanças significativas neste cenário, mas ainda há muito o que se fazer para que está compreensão seja efetivamente uma baliza na formação dos professores de história para que haja mais diálogo com a atuação de outros profissionais como os que atuam nos Anos Iniciais.
ExcluirFábio Alves dos Santos