Introdução
O contato com o passado acontece muito antes do ensino de História
escolar. A escola é, antes, o primeiro lugar onde os jovens têm contato com um
ensino sistematizado a partir de um professor especialista. Diversos saberes
são resgatados pelos alunos em todos os espaços de convívio do qual ele faz
parte e dos quais ele participa. A escola é, nesse sentido apenas mais um
espaço de construção subjetiva. Para além dela a família, a religião, as mídias
estão constantemente passando suas visões e concepções de mundo para os jovens.
Esses ambientes têm uma visão de história própria que enquadra todos os
pressupostos que guiam os sujeitos que fazem parte de uma mesma ideologia. Eles
servem para todos os efeitos como constituidores da ordem no interior dos
grupos que estabelecem uma identidade comum em detrimento da diferenciação de
outros grupos.
Um dos espaços que age de igual maneira com o propósito de manter suas
estruturas é o Estado. Nesse sentido os arcabouços que o compõe atuam, dentre
outros objetivos, para a manutenção de sua coesão interna. A escola é um dos
principais espaços onde isso acontece. A partir dos estudos das artes, da
língua, do espaço e da história nacional, os alunos são encaminhados para um
mundo onde a ordem da nacionalidade reina soberana. De maneira contrária o
papel das humanidades deveria ser questionar conceitos tão oblíquos como o é a
identidade. Um passado comum com fatos, heróis e cenários comuns que direcionam
ao grande protagonista: o Estado; este é o pacote embalado em prol da identidade
nacional que para além do ensino de história tradicional está presente em
festas comemorativas, nas mídias, nas artes e em totens nacionais.
Como é que, diante desse cenário, os alunos se relacionam com a história
nacional? Há uma aproximação ou um afastamento com relação à história
escolar-acadêmica embasada? Quais são os elementos evocados e mais repetidos em
narrativas sobre a história do Brasil? Esse foram os questionamentos que
tentamos responder no decorrer desta pesquisa que fez seu estudo através das
respostas dadas por alunos do terceiro ano do ensino médio de uma escola de
periferia da cidade de Ponta Grossa, Paraná a um questionário contendo a
seguinte consigna “por favor, conte a história de seu país”. Ao todo 104
questionários foram coletados e sistematizados seguindo a metodologia do
professor Edson Armando Silva et al. (2016; 2017).
Esse texto é o recorte de uma pesquisa que foi desenvolvida ao longo do
anos de 2017 e 2018 a partir do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica
(PIBIC) sob orientação do professor Dr. Luis Fernando Cerri, e com bolsa
concedida pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq).
Material e métodos
O material utilizado para a análise proposta nessa pesquisa foram os
questionários coletados com os alunos do ensino médio regular em idade escolar.
Neste questionário dados como data de nascimento, sexo, pertencimento étnico
racial, renda familiar e religião eram solicitados. A principal pergunta porém,
de caráter qualitativo, a ser respondida da maneira que os alunos achassem mais
pertinente, era “por favor, conte a história do seu país”. Além disso o
questionário contou com uma segunda pergunta “por favor, escreva o que você
sabe sobre a história da democracia”, que não foi analisada por nós para esta
pesquisa, conforme estipulamos no projeto inicial de iniciação científica.
Para a análise das narrativas empregamos o método de análise mencionado
nas linhas acima. O primeiro passo dentro dessa metodologia foi a transcrição
das narrativas que foram coletadas em papel para o computador, de maneira a
possibilitar o manejo delas a partir de um software
de sistematização. Feita a transcrição a partir do programa de processamento de
texto LibreOffice, dispomos as
redações em uma grande tabela. Dentro dessa tabela cada linha correspondia a
uma frase. Ao todo 449 frases foram discriminadas do interior do conjunto das
narrativas. As próximas etapas foram realizadas com o auxílio de um software de uso livre que trabalhou no
sentido de melhor organizar e “limpar” as informações obtidas na fase anterior,
esse software é o OpenRefine. Com ele primeiro tornamos a
tabela mais complexa, cada linha passou a corresponder a uma palavra, e criamos
três colunas, a primeira delas para identificar a frase da qual pertencia cada
palavra, a segunda contendo as palavras, e a terceira para indicar o tipo
daquela tabela “undirected”, para que
pudéssemos transformar essa tabela futuramente em uma rede de grafos; depois
fizemos a limpeza dos dados, com o objetivo de remover palavras que não possuem
sentido quando removidas do contexto de uma frase (palavras como “da”, “de”,
“a”, “e”, “como”, “em”, “para”, “eu”, “né”, etc.), são as chamadas stopwords. Retiramos também todas as
pontuações presentes no texto, padronizamos as palavras colocando todas as
letras delas em minúsculo e unificamos termos com mesmo radical. Com esses
procedimentos pudemos ter uma visão geral dentre outros elementos, das palavras
e termos evocados pelos alunos, além de saber a frequência e a relevância que
elas possuem no montante das redações.
Resultados e discussão
O primeiro panorama de análise é a partir da mensuração da frequência de
utilização de determinadas palavras. No montante das narrativas vemos a evocação de nomes como “pedro_alvares_cabral”, “dom_pedro_i”,
“dom_pedro_ii” e “getúlio_vargas”, aparecendo mais de 90 vezes; classificações
como “brasil_colônia”, “brasil_império”, “brasil_república” ou então
simplesmente “colônia”, “império” e “república”, ou ainda seus derivados, como
“colonial”, ou subdivisões como “republica_velha”, “ditadura_militar” se
repetem mais de 70 vezes; marcos, eventos e datas, como “lei_áurea”, “1888”,
“vinte_e_dois_de_abril”, ou então
“colonização” e “independência” afora palavras que remetem a fatos, como
“proclamou” aparecem mais de 300 vezes. Apenas com base nesse conjunto já
podemos visualizar a tendência geral de construção de uma história fortemente
factual, centrada em personagens e marcos específicos.
Em contraponto, grupos marginalizados da história como “negro”/“negros”,
aparece 17 vezes; “mulher”/“mulheres” se repete apenas 3 vezes, e, como
personagens femininos as únicas que tem espaço são “dilma”, “catarina” e
“princesa_isabel” se repetindo 5 vezes no conjunto das 104 respostas coletadas,
existindo ainda 1 alusão à “presidenta” que em contraposição às 12 utilizações
da palavra no masculino quase desaparece. Personagens negros ou que tenham
relevância para o movimento negro não têm espaço dentro dessas narrativas. Se
nos atentarmos ao perfil dos participantes da pesquisa, porém, 60 do total de
104 participantes, são mulheres, e, das 65 pessoas que responderam a questão
sobre o pertencimento étnico-racial (pois era optativa, a ser respondida
somente se os participantes se sentissem à vontade) 27 se denominaram negros,
mulatos, pardos ou afrodescendentes, uma quantidade expressiva em ambos os
casos.
A exceção no caso dos grupos maioria-minoria é com relação a “índio” e
seus derivados como “indígenas”, que se repete quase 200 vezes (em contraposição a isso, seu equivalente entendido com
mais criticidade, “nativos”, se repete apenas 17 vezes; as palavras
“autóctones” e “aborígene” não existem nesse conjunto de narrativas.), mas isso pode
ser explicado pela forte tendência de relacionar a história do Brasil apenas
com seus primeiros anos, o “descobrimento”, raras vezes indo além do “Brasil
colonial”.
A tendência de relacionar a história do Brasil majoritariamente à
história da colonização pode ser visualizada quando vemos a frequência da
utilização de palavras específicas como “1500”, “pedro_alvares_cabral”,
“descoberto”, “pau_brasil”, “colonização”, “colonizado” e “colônia”, que
somadas se repetem 222 vezes, sem considerar as palavras que tem o mesmo significado
mas terminação e gênero diferente ou então que estão no plural. Aliás, quanto
mais avançamos no tempo, menor é a visibilidade dentro das narrativas, para
termos uma noção, fazendo uma divisão da história em colônia, império e
república, podemos calcular que, das utilizações de personagens 55% se refere
aos coloniais, 22% aos imperiais e 17% aos republicanos; no tocante aos
eventos, datas e marcos, 76% são condizentes ao período colonial, 57% ao
imperial e apenas 6% ao republicano. Essa lógica se inverte apenas no que diz
respeito às classificações, sendo 21 relacionados ao Brasil colônia, 29% ao
império e 28% à república, com uma singularidade que é quanto à ditadura, tendo
20% das chamadas.
Outro sentido que podemos visualizar com o exame da frequência é com
relação ao estabelecimento da identidade dos alunos para com o passado
histórico das terras brasilis. Essa identidade, anacrônica em espaço e
tempo é estabelecida através do binômio nós x eles, e podemos constatá-la ao
averiguar a utilização da primeira e da segunda pessoa do plural, nós e eles,
referindo-se respectivamente à identidade do narrador, e ao diferente. Não se
atendo aos verbos, mas apenas ao sujeito, vemos que a palavra “eles” se repete
mais de 50 vezes, enquanto “nós” e ainda “nosso”, “nossa” e demais pronomes
possessivos da primeira pessoa do plural, ao menos 35 vezes.
Conclusão
Do empregado nessa análise, categorias como cronologia, sentidos
adotados, formas de geração de sentido, temas conjurados, podem ser confirmados
para emprego de conjunto de termos e para enquadrar determinados conteúdos no
sentido de trazer algum retorno à prática do ensino de história. As minorias,
por exemplo, por mais que sejam tema de interesse da historiografia nos últimos
anos, e que as editoras de livros didáticos os tenham inserido no conteúdo de
seus livros por conta de políticas públicas como o Programa Nacional do Livro
Didático (PNLD), ainda é marginalizado no relato dos alunos. Outra questão é a
relação anacrônica que é estabelecida pelos alunos entre a história do Brasil e
os primeiros momentos da colonização estabelecida pelos europeus nos
territórios americanos, que em nenhuma instância se configuravam enquanto um
Estado-nação moderno e que assim é construída na narrativa dos jovens.
Diante disso podemos concluir a partir do material analisado por nós que
os alunos se relacionam muito mais a uma história mais tradicional,
irrefletida, que continua servindo de propagação da nacionalidade a partir de
seus heróis e eventos marcantes para a construção do Estado nacional,
afastando-se do que Rüsen (2007, p. 48-63; 2010, p. 61-71) chama de uma
reflexão histórica baseada numa consciência histórica crítico-genética na
medida em que reproduzem tanto a história “oficial” quanto seus estigmas, como
a exclusão de determinados grupos e eventos em detrimento de outros ou então a
identificação anacrônica à nacionalidade.
Referências
Giuvane de Souza Klüppel é graduado em História pela Universidade Estadual
de Ponta Grossa (UEPG). Participa do Grupo de Estudos em Didática da História
(GEDHI). Este trabalho foi financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), por intermédio do Programa Institucional de
Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), sob orientação do professor Dr. Luis
Fernando Cerri.
RÜSEN,
Jörn. História Viva: teoria da história III
– formas e funções do conhecimento histórico. Editora Universidade de Brasília,
2007.
RÜSEN,
Jörn. O desenvolvimento da competência narrativa na aprendizagem histórica: uma
hipótese ontogenética relativa à consciência moral Em: BARCA, Isabel, MARTINS,
Estevão Rezende, SCHMIDT, Maria Auxiliadora (orgs). Jörn Rüsen e o ensino de história.
Curitiba: Ed. UFPR, 2010, p. 51-77.
SILVA, Edson Armando; ALMEIDA, João Paulo Leandro
de; SILVA, Joseli Maria; CAMPOS, Mayã Polo de. Técnicas de Análise de Conteúdo:
Experiências de Pesquisas Desenvolvidas pelo Grupo de Estudos Territoriais. Revista
Latino Americana de Geografia e Gênero. Ponta Grossa, v. 8, n. 2, p. 401-425, ago./dez. 2017.
SILVA, Edson Armando; SILVA, Joseli Maria. Ofício, Engenho e Arte:
Inspiração e Técnica na Análise de Dados Qualitativos. Revista Latino
Americana de Geografia e Gênero. Ponta
Grossa, v. 7, n. 1, p. 132-154, jan./jul. 2016.
Olá!
ResponderExcluirBastante pertinente a abordagem. O material analisado fundamentou muito bem o trabalho.
Sabemos que a história tradicional é construida por meio de um longo processo que permeia toda uma trajetória escolar dos alunos. Muito temos discutido acerca da desconstrução de certos conceitos e a necessidade enfatizar história das minorias.
Diante desses desafios, quais métodos podem ser usados pelos professores ( principalmente no ensino médio) para desconstruir essa história tradicional e, consequentemente, a construção de narrativas por parte dos alunos que contemplem essas novas perspectivas?
Maria Fabíola da Silva
mariafabioladasilva@yahoo.com.br
Olá, Maria.
ExcluirPrimeiro, agradeço pela pergunta.
Essa ''desconstrução da história tradicional não é, e nem tem sido uma tarefa fácil. Não acredito que exista uma fórmula, mas existem algumas atitudes que podem ser tomadas.
Estudos constantemente nos mostram que nós, professores, não podemos depender de outros agentes nessa tarefa. Materiais didáticos, por exemplo, em muito se adaptaram a uma abertura no sentido de incluir temas relacionados às minorias, mas estes entram como apêndices ao conteúdo oficial. As novas mídias tem o potencial de ajudar nesse caminho, mas iniciativas como o "Brasil Pararelo", por exemplo, mostram que não é sem resistências de um movimento conservador que tem agentes de fora, mas também de dentro de nossa disciplina. Demais exemplos que avançam nesse sentido são vastos (como as políticas educacionais, práticas relacionadas à formação de professores, os currículos, etc), e além disso nosso cenário não é dos mais favoráveis.
O trabalho é de formiga, mas acredito - como já ressaltei acima - que nosso principal método está relacionado a atitudes. Não só do professor, no sentido de problematizar com os alunos a ausência, ou quando for o caso, o lugar dado às minorias; mas também de trabalharmos uma atitude crítica com os alunos para que eles adquiram os meios necessários para sozinhos pensar sobre questões/temas/agentes que são ocultos pela história tradicional.
No meio de tudo isso importa o lugar que nós reservamos a esses conteúdos. Uma questão posta é se devemos trabalhar uma história “das minorias” ou então uma história “com as minorias”. Não podemos tratar das mulheres na história, por exemplo, apenas na semana que precede/sucede o dia 8 de março. O mesmo com relação a questões indígenas, negras, queer, etc. Devemos incluir isso no conteúdo programático semanal, mensal e anual. Não apenas quando for tratar de história cultural (que é quando esses conteúdos acabam sendo abordados), mas inseri-los em discussões no âmbito da história econômica e social, também.
Isso, entretanto, é outro tarefa relacionada a atitude.
Espero que tenha te dado uma resposta satisfatória.
Um abraço,
Giuvane de Souza Klüppel
giuvane_sk@hotmail.com
Olá Giuvane de Souza Klüppel! Parabéns pelo seu trabalho, uma ótima análise, principalmente no tocante ao esquadrinhamento das palavras. Seu trabalho me suscitou duas questões:
ResponderExcluir1) De que maneira você busca fundamentar o próprio conceito de narrativa histórica?
e 2) De que maneira você traçaria um perfil metodológico (partindo de pressupostos metodológicos que você tenha conhecimento) para se romper com padrões hegemônicos de ensino, principalmente no tocante aos aspectos relacionados às minorias, onde você mesmo mostra, devido a um estudo empírico que as mesmas ainda ocupam espaço pequeno nas estruturas mentais de jovens estudantes?
Att Flávio José Dalazona
Olá Flávio, agradeço pelas questões.
ExcluirRespondendo em ordem: 1) não abordo nesse texto o conceito de narrativa histórica. Ele já existe, e quem trabalha com ele, por exemplo, é o próprio Jorn Rüsen. Eu menciono narrativa, porém também não desenvolvo, até porque não foi a intenção desse trabalho.
2) Acho difícil estabelecer um perfil metodológico nesse sentido. Não tenho conhecimento de nada nesse sentido. Existem, entretanto, algumas ações que podem ser feitas, desde o próprio professor em suas aulas por exemplo. Comentei um pouco sobre isso na resposta acima.
Espero que possa ter respondido, na medida do possível, suas questões.
Um abraço,
Giuvane de Souza Kluppel
Olá Giuvane Klüppel, boa noite!
ResponderExcluirMinha pesquisa de mestrado tem muita proximidade temática com a sua, a diferença é que na minha busquei identificar os pertencimentos nacionais ligados a História do Brasil, esse seu trabalho fez parte de algum Projeto?
Fiquei feliz em ler seu texto! Parabéns!
Att. Crislane Dias Santana.
Olá Crislane.
ExcluirObrigado pelo comentário.
Respondendo à sua pergunta: sim, meu trabalho faz parte de um Projeto intitulado "O país e o mundo em poucas palavras: narrativas de jovens sobre seus pertencimentos - implicações para o ensino de ciências humanas".
Esse texto em específico é o recorte de uma iniciação científica realizada durante 2017-2018. Trabalho também com a questão da identidade nacional. Caso se interesse, publiquei há poucos dias um artigo com essa abordagem. Segue link: https://www.revistas.uneb.br/index.php/nhipe/article/view/6060/3845
Um abraço,
Giuvane de Souza Klüppel
Então participamos do mesmo Projeto! :) Muito feliz em ler outros trabalhos do Projeto e identificar uma quase paridade nos resultados, ah muito obrigada pela indicação do seu outro texto!
ExcluirBoa noite!
Att. Crislane Santana.
Diante do estudo proposto, das atuais políticas educacionais que buscam retirar a autonomia do professor/professora em sala de aula, que abordagem poderíamos ter em nossa rotina que ultrapasse o livro didático e as poucas fontes que temos acesso em algumas instituições de ensino?
ResponderExcluirOlá Diovana. Agradeço pela pergunta.
ExcluirBom, como comentei acima, acredito que nesse momento o caminho viável está relacionado a atitudes. É difícil, mas devemos tentar não nos deixar abater pelo contexto sócio-político, que realmente não é nada animador. São tempos de resistência.
Com relação à escassez de fontes, as mídias podem nos ajudar muito. Existem diversos projetos que disponibilizam materiais que vão na contramão de uma abordagem tradicional de história. Um deles é a Nova Escola, que tem o projeto de elaborar e disponibilizar mais de 1500 planos de aula de História. Devemos ficar atentos a iniciativas como essa, que podem auxiliar muito o trabalho docente.
Um Abraço,
Giuvane de Souza Klüppel