Lucas Rafael Santos Costa


AS AFRICANIDADES NOS CURSOS DE HISTÓRIA NAS UNIVERSIDADES EM TERESINA, PIAUÍ


A implementação de uma lei voltada para a reformulação do currículo na contemporaneidade revela as evidências materiais do processo histórico-acontecimental de inclusão e exclusão dos atores sociais a constituírem a população nacional nas narrativas sobre a formação da nação e do povo brasileiro com suas identificações, coletividades e representações. Deste modo, este artigo se propõe a refletir, a partir da obrigatoriedade das 10639/2003 e 11645/2008, e com base nos currículos da UFPI e UESPI, em que medida estas instituições, que são os dois principais centros de pesquisa e ensino do Estado do Piauí, foram capazes de trazer ao centro da formação dos professores de História os conteúdos da História e à Cultura Afro-Brasileiras, possibilitando à saída da carência de orientação (RUSEN, 2001), no que se refere as africanidade, afro-brasilidade e afrodescendências contribuindo para a valorização da diversidade étnico-racial.

As legislações 10.639/03 e 11.645/08, incorporadas na redação da Lei nº 9.394/96 (LDB) tem atribuído aos sistemas de ensino municipal, estadual e federal e em suas respectivas instituições educacionais, grandes desafios quanto ao tratamento e abordagem das temáticas da história e culturas afro-brasileiras e indígenas, bem como as relações étnico-raciais em seus espaços de ensino-aprendizagem. Essa inclusão tem suscitado incontáveis debates, não somente sobre os estudos dos afrodescendentes e indígenas, mas também sobre outros ideários maiores, como os de democracia, cidadania, identidade étnica tendo reconhecidamente como princípio a importância e valorização destes povos na formação da sociedade brasileira, justificando a sua pertinência nas propostas curriculares em todos os níveis e modalidades de ensino.

Para investigarmos estas questões tomaremos à Universidade Federal do Piauí (UFPI) e Universidade Estadual do Piauí (UESPI), delimitadas à cidade de Teresina, capital do Piauí. Tal delimitação se dá pelo fato de serem os dois maiores centros de formação de professores e por assumirem a vanguarda da produção de conhecimento do Estado do Piauí. O objetivo geral é compreender os caminhos delineados, por intermédio dos currículos, à proposito das africanidades e afrodescendências demandas pelas leis.

A implementação de uma lei voltada para a reformulação do currículo escolar na contemporaneidade, nas instituições públicas e privadas de ensino básico, pode parecer um desafio que transponha os limites temáticos da área histórica. Todavia, não devemos excluir que é no campo educacional que se concentram evidências materiais do processo histórico-acontecimental (Ringuelet, 1991) de inclusão e exclusão dos atores sociais a constituírem a população nacional, com suas identificações, coletividades e representações.

Com objetivo de identificar e analisar pistas, vestígios e sinais sobre as africanidades e afrodescendências que levasse a compreensão das negociações na construção curricular o aporte documental que dará materialidade à investigação serão os Projetos Pedagógicos de Curso (PPC) dos cursos de história destas duas instituições, estrutura curricular do curso e planos de curso de disciplinas que envolvam as temáticas em questão, além de uma análise do corpo docente que se volta para estas estudos no período de 2003 a 2017. O objetivo específico é investigar as movimentações destas Instituições para se ajustarem às novas reformulações demandadas por essas legislações e pareceres.

Com a obrigatoriedade da lei, pela primeira vez foi possível inovar no campo da educação e no ensino das relações étnico-raciais, o que significou a superação dos currículos de caráter monocultural por meio dos componentes curriculares da história da África e cultura afro-brasileira e em um segundo momento, também, vem à tona obrigatoriedade da história indígena, caracterizando a multiplicidade da formação da população brasileira. Essas inovações são frutos do investimento destes segmentos sociais que visam promover rupturas com relação à tradição escolar fincada nos moldes do etnocentrismo europeu por meio do ensino que valorize a pluralidade de sua formação cultural.

O curso de história da UFPI, campus Petrônio Portella em Teresina, ao longo de sua história tem apresentado algumas fragilidades e deficiências no que se refere a formação em história voltada para a história e cultura afro-brasileira. Assim como o Curso de História da UESPI, que apresenta unicamente a disciplina História da África e Ásia com duração de 60h-aula. A UFPI, oferta a disciplina História da África, todavia em caráter optativo, e para que ela seja de fato ofertada é necessário interesse de algum professor para ministrá-la, interesse da coordenação e demanda dos alunos. Isso tudo mantém a oferta dessa disciplina a mercê de todo um contexto que dificulta que haja ruptura com a cultura histórica eurocêntrica que permeia os cursos de história, não só no Piauí, mas também na maior parte do Brasil.

O que se pode destacar é que o curso de História da UFPI sediado na capital, embora pouco tenha um corpo docente especializado nas temáticas tem se mostrado aberto à temática e tem articulado ações no sentido de desenvolver disciplinas e o debate isso pode ser verificado nas configurações das últimas grades curriculares que já apresentam disciplinas como a história da África e cultura afro-brasileira. Já a UESPI possui um corpo docente dotado de especialistas no trato destas questões, mas isso não necessariamente se refletiu na criação de disciplinas específicas.

Essas descrições foram feitas com base nos PPC da formação inicial presenciais nos cursos de História ofertados na capital Teresina. Somada a estes tem-se a oferta de outras modalidades como o Programa Nacional de Formação de Professores da Educação Básica (PARFOR) e cursos ofertados na modalidade a distância (EAD). No caso da UESPI, a modalidade a distância segue a mesma matriz curricular do curso tradicional, a diferença é a oferta da disciplina de Introdução à Educação à Distância. Estas instituições também desempenham um importante papel na formação de professores no contexto das pós-graduações em especial na oferta cursos de qualificações profissionais como especializações e eventos no campo da história e áreas afins.

No Piauí, a Universidade Federal do Piauí (UFPI), por meio do Centro de Educação Aberta e à Distância (CEAD) durante o biênio 2014-2015, ofereceu-se no município de Teresina, os seguintes cursos: Especialização em Política de Promoção da Igualdade Racial da Escola, Especialização em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça, Especialização em Gênero e Diversidade na Escola. Cada uma dos cursos com 50 vagas destinadas a profissionais da educação básica da rede pública de ensino. Tais cursos representam um desdobramento da institucionalização do movimento negro que chama atenção para a necessidade da tomada dos saberes epistemológicos das relações étnico-raciais, o preparo docente para a diversidade, conduzindo a promoção da igualdade pela via do ensino.

A expectativa expressa nesta política de qualificação é que o professor possa exercer um verdadeiro papel de efeitos multiplicadores. A formação de uma consciência histórica que leva a processos de identificações, neste caso exerce uma ação determinante. Caso o professor se identifique, vai permitir que ele leve esse conhecimento histórico para o debate em sala de aula, possibilitando ruptura com as narrativas tradicionais e os silenciamentos. Logo, isso implicara diretamente na real efetivação das práticas de conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira de forma ressignificadas. Neste caso, para além de políticas identitárias o saber histórico deve conduzir para a problematização da questão da cidadania e garantia de direitos sociais.

Contudo, entendemos que a lei em si mesma não represente a garantia de sua exequibilidade. A mesma incide em mosaico cultural e das negociações das ideologias hegemônicas historicamente enquadradas na educação escolar brasileira.

Entre os cursos tradicionais, modalidade a distância e pós-graduações nas duas universidades no Estado do Piauí, é possível verificar que onde mais se tem avançado dentro da academia, no tocante às questões de africanidades é nos cursos de especialização. Esse estudo-diagnóstico confirma o que diz Benjamim e Guimarães quando se referem à formação continuada, afirmando que ela “torna-se basilar para a implementação da obrigatoriedade do estudo da história e da Cultura Africana e Afro-brasileira, tendo em vista a formação inicial considerada lacunar ou mesmo insatisfatória neste campo” (PAULA; GUIMARÃES, 2014, P.140).

Mônica Lima, entre outros, considera a formação de professores como um dos grandes empecilhos a implementação da lei. Se comprovadamente tem-se uma formação deficiente, fruto de “séculos de desconhecimento e distanciamento intelectual”( LIMA, 2000, P.160), isso nos permite indagar a partir das palavras da autora os professores de história do ensino superior que reflete na educação básica que “História será esta a ser apresentada, se a maioria dos professores em sala não tiveram contato com ela? (LIMA, 2000, P.162)” Isso revela que toda a formação histórica brasileira fundamentada na matriz europeia, em especial a francesa no qual não percebe na África a sua relevância, sendo a educação formal reflexo desse modelo, sendo o lugar conferido a ela os espaços das ausências. E essa é uma questão latente na educação brasileira que precisa ser problematizada.

Para Lima, os aspectos legais não são os únicos elementos que ponderam a importância da história da África, para ela “conhecer a história da África é um caminho para entendermos melhor a nós mesmos” (LIMA, 2000, P.172). Neste sentido, acrescento as palavras do historiador Joseph Ki-Zerbo, que introduz a coleção sobre África, dizendo que “a África tem uma história” (KiZerbo, 2010, P.XXXI) e para ele se apropriar-se dessa história representa um ato de tomada de consciência e conclui chamando atenção para o fato que ela deve ser reescrita, não no sentido de uma história-revanche, mas de mudar de perspectiva e criar em todos uma consciência autentica.

Quando o assunto é África, os espaços educativos vivem sob o imperativo das ausências e do exótico: ausência de especialistas, leituras específicas, de referências e isso caracteriza um iminente perigo da permanência de uma história única e propagação de uma imagem depreciativa da África e do africano, fundada no desconhecimento da sua história.

Nos cursos de História destas duas instituições, que têm como objetivo formar pessoas para exercerem função de historiador e de professor de história, que são dois lados de uma mesma moeda, pode-se concluir que o problema reside em que muitas vezes, pela formação deficiente que recebe, o professor se mantém, mesmo sem saber, imerso na “carência de orientação”, no sentido de Rüsen (RUSEN, 2001), o que o leva a transformar, ainda que inconscientemente, o discurso historiográfico numa visão particularizante da história. O curso serviria para, a pretexto das legislações, pensar sobre como estas instituições tem colaborado para a passagem, ou não, da “carência de orientação” à “consciência histórica”. O que se pode aferir-se é que a uma carência na formação teórica e prática acaba por dar continuidade a um ciclo de desconhecimento sobre a importância da África na formação do Brasil.

Na perspectiva defendida pela legislação, deve ser dada atenção singular à formação docente. Afinal, a operacionalização desta lei, passa pela criação de condições na sua formação, fato que gera uma nova demanda que é a oferta de cursos e materiais pedagógicos para que haja o gerenciamento qualificado toda essa composição em sala de aula. Tendo em vista que os licenciados que saem destes cursos normalmente têm o preparo deficitário para ensinar história da África e cultura afro-brasileira.

Com base na historiografia e no conhecimento da história do ensino de história e na atuação dos movimentos sociais que mobilizam essas demandas, torna-se evidente que não se trata simplesmente incluir o ensino de história da África e cultura afro-brasileira. Não é puramente a questão da inserção do negro e do índio no ensino. Para Lima, “o que está em jogo é bem mais que a nossa competência profissional, é o nosso compromisso com um país mais justo e com um mundo melhor para todos e todas” (LIMA, 2000, P.167). Acrescento, ainda que o quê está é jogo é algo muito amplo são as nossas referências de passado e tem a ver com o que a gente pensa enquanto projeto de sociedade. São questões profundas nas quais a lei é apenas um elemento de um amplo e complexo debate que deve ser tratado com profundidade. Isso é algo grandioso que precisa ser discutido amplamente pela sociedade, não somente nos espaços escolares mais nas ruas, nas praças, nas salas, nas igrejas, terreiros e onde quer que seja o espaço. Portanto, torna-se imprescindível efetivá-la na sala de aula por meio do ensino.

Os centros de formação, sejam eles a escola ou universidades, podem legitimar determinados modos de ver e fazer, como podem questioná-los. Assim, a memória desviante historicamente propagada nos diversos espaços de saberes da sociedade nacional, fruto das relações de poder que deslocam essas memórias como minimamente incapazes de assumir qualquer tipo de protagonismo ou poder criativo, seja qual for o âmbito cultural, relegando, na maioria das vezes, ao silêncio quando não ao lugar de inferioridade na hierarquia social e cultural como tanto tem evidenciado o movimento negro.

Estas duas instituições que atuam diretamente na formação inicial de professores e também na programação e oferta de cursos de formação continuada como cursos de atualização profissionais e especializações estabelecendo um viés legitimador para esta produção intelectual da universidade piauiense em torno das africanidades, possui uma oportunidade única de promover, conduzir e protagonizar um movimento de rupturas com modelos tradicionais que legitimam, justificam e hierarquizam a sociedade que gera subprodutos na cultura. Seu protagonismo pode se dar em possibilitar abrir caminho para inovar nas epistemologias, saberes e fazeres de forma a romper e criar novas formas que valorize o outro e criem uma cultura do respeito e reconhecimento do outro nas duas diferenças e individualizadas.

O futuro a que se propõe a legislação nacional, e os anseios de novos parâmetros de sociedade, depende dos espaços de legitimação dos espaços acadêmicos das universidades, da formação de professores e da intervenção destes atores no mundo. Sua ação pode aliar-se à manutenção das estruturas dominantes ou pode levar a desconstruções e fissuras. A verificação dos currículos destas universidades tem demonstrado que pouco tem avançado no debate das africanidades. Trabalhar com a lei é discutir as raízes formadoras na nacionalidade, os projetos, a escrita, seu lugar de enunciação, a sociedade, o outro, as diferenças, o respeito, identidade, memória e a própria história. Para tanto, é preciso uma “mudança de mentalidade” conforme o parecer CNE/CP 1/2004.

Deste modo, conclui-se que é necessário ampliar as discussões nas universidades em Teresina, sobre as africanidades e afrodescendência no âmbito da formação inicial, tendo em vista que essa amostra representativa de um universo maior tem apontado que a universidade piauiense ainda tem sido um espaço privilegiado de reprodução do eurocentrismo e suas hegemonias.

E, com base a teoria de Jörn Rusen, percebemos que a universidade, do ponto de vista da formação inicial em que se formam historiadores e os professores de história, não foi capaz de realizar a passagem da carência de orientação à teoria da história. Portanto permanece o caldo cultural da carência e das ausências mesmo com uma vasta publicação voltada para a temática do ensino e das relações étnico-raciais e ações governamentais que tem incentivado grandes e importantes publicações que oferecem o aporte teórico-metodológico para as devidas tratativas das temáticas. Isso se repercute negativamente na propagação de uma história nacional de uma comunidade imaginada que não percebe o negro como sujeito e suas contribuições dando continuidade a uma cadeia estruturada na sociedade de subalternização.

E com todos os desafios postos as africanidades e afrodescendências é possível perceber alguma “mudança de postura” como propõe as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais. Afinal, não é tarefa fácil irromper com séculos de sedimentação e amplas narrativas que colocam em evidência o etnocentrismo europeu que marca nossa cultura, sociedade e educação brasileira.

REFERÊNCIAS:

Lucas Rafael Santos Costa é professor da Rede Estadual de Educação do Piauí (SEDUC-PI).

BRASIL. Lei 10.639/2003, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9. 394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm> acesso em 18 out 2017.
COELHO, MAURO CEZAR; COELHO, WILMA DE NAZARÉ BAÍA. A lei n°. 10.639/03 e consciência histórica: ensino de História e os desafios da Diversidade. Anpuh. 2013.
KIZERBO, Joseph. História geral da África, I: Metodologia e pré-história da África. 2.ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010. p. XXXI.
 LIMA, Monica. Fazendo soar os tambores: o ensino de História da África e dos Africanos no Brasil. Cadernos PENESB, v. 1, 2000, p. 159-173
PAULA, Benjamin Xavier de; GUIMARAES, Selva. 10 anos da lei federal nº 10.639/2003 e a formação de professores: uma leitura de pesquisas científicas. Educ. Pesqui.,  São Paulo ,  v. 40, n. 2, p. 435-448,  jun.  2014. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022014000200009&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em  16  mai.  2018
Pérez Ringuelet, S. Entrevista al profesor Jacques Le Goff. Boletín de Historia Social Europea. 1991 núm. 3, p.57-68. En Memoria Académica. Disponível em: http://www.memoria.fahce.unlp.edu.ar/art_revistas/pr.2420/pr.2420.pdf < acesso em 05 set 2017.
RÜSEN, Jörn. Razão histórica: Teoria da história: fundamentos da ciência histórica. Brasília: UnB, 2001.

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