A implementação de uma lei voltada
para a reformulação do currículo na contemporaneidade revela as evidências
materiais do processo histórico-acontecimental de inclusão e exclusão dos
atores sociais a constituírem a população nacional nas narrativas sobre a
formação da nação e do povo brasileiro com suas identificações, coletividades e
representações. Deste modo, este artigo se propõe a refletir, a partir da
obrigatoriedade das 10639/2003 e 11645/2008, e com base nos currículos da UFPI
e UESPI, em que medida estas instituições, que são os dois principais centros
de pesquisa e ensino do Estado do Piauí, foram capazes de trazer ao centro da
formação dos professores de História os conteúdos da História e à Cultura
Afro-Brasileiras, possibilitando à saída da carência de orientação (RUSEN,
2001), no que se refere as africanidade, afro-brasilidade e afrodescendências
contribuindo para a valorização da diversidade étnico-racial.
As legislações 10.639/03 e
11.645/08, incorporadas na redação da Lei nº 9.394/96 (LDB) tem atribuído aos
sistemas de ensino municipal, estadual e federal e em suas respectivas
instituições educacionais, grandes desafios quanto ao tratamento e abordagem
das temáticas da história e culturas afro-brasileiras e indígenas, bem como as
relações étnico-raciais em seus espaços de ensino-aprendizagem. Essa inclusão
tem suscitado incontáveis debates, não somente sobre os estudos dos
afrodescendentes e indígenas, mas também sobre outros ideários maiores, como os
de democracia, cidadania, identidade étnica tendo reconhecidamente como
princípio a importância e valorização destes povos na formação da sociedade
brasileira, justificando a sua pertinência nas propostas curriculares em todos
os níveis e modalidades de ensino.
Para investigarmos estas questões
tomaremos à Universidade Federal do Piauí (UFPI) e Universidade Estadual do
Piauí (UESPI), delimitadas à cidade de Teresina, capital do Piauí. Tal
delimitação se dá pelo fato de serem os dois maiores centros de formação de
professores e por assumirem a vanguarda da produção de conhecimento do Estado
do Piauí. O objetivo geral é compreender os caminhos delineados, por intermédio
dos currículos, à proposito das africanidades e afrodescendências demandas
pelas leis.
A implementação de uma lei
voltada para a reformulação do currículo escolar na contemporaneidade, nas
instituições públicas e privadas de ensino básico, pode parecer um desafio que
transponha os limites temáticos da área histórica. Todavia, não devemos excluir
que é no campo educacional que se concentram evidências materiais do processo
histórico-acontecimental (Ringuelet, 1991) de inclusão e exclusão dos atores
sociais a constituírem a população nacional, com suas identificações,
coletividades e representações.
Com objetivo de
identificar e analisar pistas, vestígios e sinais sobre as africanidades e
afrodescendências que levasse a compreensão das negociações na construção curricular
o aporte documental que dará materialidade à investigação serão os Projetos
Pedagógicos de Curso (PPC) dos cursos de história destas duas instituições,
estrutura curricular do curso e planos de curso de disciplinas que envolvam as
temáticas em questão, além de uma análise do corpo docente que se volta para
estas estudos no período de 2003 a 2017. O objetivo específico é investigar as
movimentações destas Instituições para se ajustarem às novas reformulações
demandadas por essas legislações e pareceres.
Com a obrigatoriedade da lei, pela
primeira vez foi possível inovar no campo da educação e no ensino das relações
étnico-raciais, o que significou a superação dos currículos de caráter
monocultural por meio dos componentes curriculares da história da África e
cultura afro-brasileira e em um segundo momento, também, vem à tona
obrigatoriedade da história indígena, caracterizando a multiplicidade da
formação da população brasileira. Essas inovações são frutos do investimento
destes segmentos sociais que visam promover rupturas com relação à tradição
escolar fincada nos moldes do etnocentrismo europeu por meio do ensino que
valorize a pluralidade de sua formação cultural.
O curso de história da UFPI, campus
Petrônio Portella em Teresina, ao longo de sua história tem apresentado algumas
fragilidades e deficiências no que se refere a formação em história voltada
para a história e cultura afro-brasileira. Assim como o Curso de História da
UESPI, que apresenta unicamente a disciplina História da África e Ásia com
duração de 60h-aula. A UFPI, oferta a disciplina História da África, todavia em
caráter optativo, e para que ela seja de fato ofertada é necessário interesse
de algum professor para ministrá-la, interesse da coordenação e demanda dos
alunos. Isso tudo mantém a oferta dessa disciplina a mercê de todo um contexto
que dificulta que haja ruptura com a cultura histórica eurocêntrica que permeia
os cursos de história, não só no Piauí, mas também na maior parte do Brasil.
O que se pode
destacar é que o curso de História da UFPI sediado na capital, embora pouco
tenha um corpo docente especializado nas temáticas tem se mostrado aberto à
temática e tem articulado ações no sentido de desenvolver disciplinas e o
debate isso pode ser verificado nas configurações das últimas grades
curriculares que já apresentam disciplinas como a história da África e cultura
afro-brasileira. Já a UESPI possui um corpo docente dotado de especialistas no
trato destas questões, mas isso não necessariamente se refletiu na criação de
disciplinas específicas.
Essas descrições
foram feitas com base nos PPC da formação inicial presenciais nos cursos de
História ofertados na capital Teresina. Somada a estes tem-se a oferta de
outras modalidades como o Programa Nacional de Formação de Professores da
Educação Básica (PARFOR) e cursos ofertados na modalidade a distância (EAD). No
caso da UESPI, a modalidade a distância segue a mesma matriz curricular do
curso tradicional, a diferença é a oferta da disciplina de Introdução à
Educação à Distância. Estas instituições também desempenham um importante papel
na formação de professores no contexto das pós-graduações em especial na oferta
cursos de qualificações profissionais como especializações e eventos no campo
da história e áreas afins.
No Piauí, a Universidade Federal do
Piauí (UFPI), por meio do Centro de Educação Aberta e à Distância (CEAD)
durante o biênio 2014-2015, ofereceu-se no município de Teresina, os seguintes
cursos: Especialização em Política de Promoção da Igualdade Racial da Escola,
Especialização em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça, Especialização
em Gênero e Diversidade na Escola. Cada uma dos cursos com 50 vagas destinadas
a profissionais da educação básica da rede pública de ensino. Tais cursos
representam um desdobramento da institucionalização do movimento negro que
chama atenção para a necessidade da tomada dos saberes epistemológicos das
relações étnico-raciais, o preparo docente para a diversidade, conduzindo a
promoção da igualdade pela via do ensino.
A expectativa expressa nesta
política de qualificação é que o professor possa exercer um verdadeiro papel de
efeitos multiplicadores. A formação de uma consciência histórica que leva a
processos de identificações, neste caso exerce uma ação determinante. Caso o
professor se identifique, vai permitir que ele leve esse conhecimento histórico
para o debate em sala de aula, possibilitando ruptura com as narrativas
tradicionais e os silenciamentos. Logo, isso implicara diretamente na real
efetivação das práticas de conteúdos referentes à história e cultura
afro-brasileira de forma ressignificadas. Neste caso, para além de políticas
identitárias o saber histórico deve conduzir para a problematização da questão
da cidadania e garantia de direitos sociais.
Contudo, entendemos que a lei em si
mesma não represente a garantia de sua exequibilidade. A mesma incide em
mosaico cultural e das negociações das ideologias hegemônicas historicamente
enquadradas na educação escolar brasileira.
Entre os cursos tradicionais,
modalidade a distância e pós-graduações nas duas universidades no Estado do
Piauí, é possível verificar que onde mais se tem avançado dentro da academia,
no tocante às questões de africanidades é nos cursos de especialização. Esse
estudo-diagnóstico confirma o que diz Benjamim e Guimarães quando se referem à
formação continuada, afirmando que ela “torna-se basilar para a implementação
da obrigatoriedade do estudo da história e da Cultura Africana e
Afro-brasileira, tendo em vista a formação inicial considerada lacunar ou mesmo
insatisfatória neste campo” (PAULA;
GUIMARÃES, 2014, P.140).
Mônica Lima, entre outros, considera
a formação de professores como um dos grandes empecilhos a implementação da
lei. Se comprovadamente tem-se uma formação deficiente, fruto de “séculos de
desconhecimento e distanciamento intelectual”( LIMA, 2000, P.160), isso nos permite indagar a partir
das palavras da autora os professores de história do ensino superior que
reflete na educação básica que “História será esta a ser apresentada, se a
maioria dos professores em sala não tiveram contato com ela? (LIMA, 2000,
P.162)” Isso revela que toda a formação histórica brasileira fundamentada na
matriz europeia, em especial a francesa no qual não percebe na África a sua
relevância, sendo a educação formal reflexo desse modelo, sendo o lugar
conferido a ela os espaços das ausências. E essa é uma questão latente na
educação brasileira que precisa ser problematizada.
Para Lima, os aspectos legais não
são os únicos elementos que ponderam a importância da história da África, para
ela “conhecer a história da África é um caminho para entendermos melhor a nós
mesmos” (LIMA, 2000, P.172). Neste sentido, acrescento as palavras do
historiador Joseph Ki-Zerbo, que introduz a coleção sobre África, dizendo que
“a África tem uma história” (Ki‑Zerbo,
2010, P.XXXI) e para ele se apropriar-se dessa história representa um ato de
tomada de consciência e conclui chamando atenção para o fato que ela deve ser
reescrita, não no sentido de uma história-revanche, mas de mudar de perspectiva
e criar em todos uma consciência autentica.
Quando o assunto é África, os
espaços educativos vivem sob o imperativo das ausências e do exótico: ausência
de especialistas, leituras específicas, de referências e isso caracteriza um
iminente perigo da permanência de uma história única e propagação de uma imagem
depreciativa da África e do africano, fundada no desconhecimento da sua
história.
Nos cursos de História destas duas
instituições, que têm como objetivo formar pessoas para exercerem função de
historiador e de professor de história, que são dois lados de uma mesma moeda,
pode-se concluir que o problema reside em que muitas vezes, pela formação
deficiente que recebe, o professor se mantém, mesmo sem saber, imerso na “carência
de orientação”, no sentido de Rüsen (RUSEN, 2001), o que o leva a transformar,
ainda que inconscientemente, o discurso historiográfico numa visão
particularizante da história. O curso serviria para, a pretexto das
legislações, pensar sobre como estas instituições tem colaborado para a
passagem, ou não, da “carência de orientação” à “consciência histórica”. O que
se pode aferir-se é que a uma carência na formação teórica e prática acaba por
dar continuidade a um ciclo de desconhecimento sobre a importância da África na
formação do Brasil.
Na perspectiva defendida pela
legislação, deve ser dada atenção singular à formação docente. Afinal, a
operacionalização desta lei, passa pela criação de condições na sua formação,
fato que gera uma nova demanda que é a oferta de cursos e materiais pedagógicos
para que haja o gerenciamento qualificado toda essa composição em sala de aula.
Tendo em vista que os licenciados que saem destes cursos normalmente têm o
preparo deficitário para ensinar história da África e cultura afro-brasileira.
Com base na historiografia e no
conhecimento da história do ensino de história e na atuação dos movimentos
sociais que mobilizam essas demandas, torna-se evidente que não se trata
simplesmente incluir o ensino de história da África e cultura afro-brasileira.
Não é puramente a questão da inserção do negro e do índio no ensino. Para Lima,
“o que está em jogo é bem mais que a nossa competência profissional, é o nosso
compromisso com um país mais justo e com um mundo melhor para todos e todas” (LIMA,
2000, P.167). Acrescento, ainda que o quê está é jogo é algo muito amplo são as
nossas referências de passado e tem a ver com o que a gente pensa enquanto
projeto de sociedade. São questões profundas nas quais a lei é apenas um
elemento de um amplo e complexo debate que deve ser tratado com profundidade.
Isso é algo grandioso que precisa ser discutido amplamente pela sociedade, não
somente nos espaços escolares mais nas ruas, nas praças, nas salas, nas
igrejas, terreiros e onde quer que seja o espaço. Portanto, torna-se
imprescindível efetivá-la na sala de aula por meio do ensino.
Os centros de
formação, sejam eles a escola ou universidades, podem legitimar determinados
modos de ver e fazer, como podem questioná-los. Assim, a memória desviante historicamente
propagada nos diversos espaços de saberes da sociedade nacional, fruto das
relações de poder que deslocam essas memórias como minimamente incapazes de
assumir qualquer tipo de protagonismo ou poder criativo, seja qual for o âmbito
cultural, relegando, na maioria das vezes, ao silêncio quando não ao lugar de
inferioridade na hierarquia social e cultural como tanto tem evidenciado o
movimento negro.
Estas duas instituições que atuam
diretamente na formação inicial de professores e também na programação e oferta
de cursos de formação continuada como cursos de atualização profissionais e
especializações estabelecendo um viés legitimador para esta produção
intelectual da universidade piauiense em torno das africanidades, possui uma
oportunidade única de promover, conduzir e protagonizar um movimento de
rupturas com modelos tradicionais que legitimam, justificam e hierarquizam a
sociedade que gera subprodutos na cultura. Seu protagonismo pode se dar em
possibilitar abrir caminho para inovar nas epistemologias, saberes e fazeres de
forma a romper e criar novas formas que valorize o outro e criem uma cultura do
respeito e reconhecimento do outro nas duas diferenças e individualizadas.
O futuro a que se propõe a
legislação nacional, e os anseios de novos parâmetros de sociedade, depende dos
espaços de legitimação dos espaços acadêmicos das universidades, da formação de
professores e da intervenção destes atores no mundo. Sua ação pode aliar-se à
manutenção das estruturas dominantes ou pode levar a desconstruções e fissuras.
A verificação dos currículos destas universidades tem demonstrado que pouco tem
avançado no debate das africanidades. Trabalhar com a lei é discutir as raízes
formadoras na nacionalidade, os projetos, a escrita, seu lugar de enunciação, a
sociedade, o outro, as diferenças, o respeito, identidade, memória e a própria
história. Para tanto, é preciso uma “mudança de mentalidade” conforme o parecer
CNE/CP 1/2004.
Deste modo, conclui-se que é
necessário ampliar as discussões nas universidades em Teresina, sobre as
africanidades e afrodescendência no âmbito da formação inicial, tendo em vista
que essa amostra representativa de um universo maior tem apontado que a
universidade piauiense ainda tem sido um espaço privilegiado de reprodução do
eurocentrismo e suas hegemonias.
E, com base a
teoria de Jörn Rusen, percebemos que a universidade, do ponto de vista da
formação inicial em que se formam historiadores e os professores de história,
não foi capaz de realizar a passagem da carência de orientação à teoria da
história. Portanto permanece o caldo cultural da carência e das ausências mesmo
com uma vasta publicação voltada para a temática do ensino e das relações
étnico-raciais e ações governamentais que tem incentivado grandes e importantes
publicações que oferecem o aporte teórico-metodológico para as devidas
tratativas das temáticas. Isso se repercute negativamente na propagação de uma
história nacional de uma comunidade imaginada que não percebe o negro como
sujeito e suas contribuições dando continuidade a uma cadeia estruturada na
sociedade de subalternização.
E com todos os desafios postos as
africanidades e afrodescendências é possível perceber alguma “mudança de
postura” como propõe as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais. Afinal, não é tarefa fácil irromper com séculos de
sedimentação e amplas narrativas que colocam em evidência o etnocentrismo europeu
que marca nossa cultura, sociedade e educação brasileira.
REFERÊNCIAS:
Lucas Rafael Santos
Costa é professor da Rede Estadual de Educação do Piauí (SEDUC-PI).
BRASIL.
Lei 10.639/2003, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9. 394, de 20 de
dezembro de 1996. Diário Oficial da União, Poder Executivo, Brasília.
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm>
acesso em 18 out 2017.
COELHO,
MAURO CEZAR; COELHO, WILMA DE NAZARÉ BAÍA. A lei n°. 10.639/03 e consciência
histórica: ensino de História e os desafios da Diversidade. Anpuh. 2013.
KI‑ZERBO, Joseph. História geral da África, I: Metodologia e pré-história da África. – 2.ed. rev. – Brasília: UNESCO, 2010. p. XXXI.
LIMA, Monica. Fazendo soar os tambores: o
ensino de História da África e dos Africanos no Brasil. Cadernos PENESB, v. 1,
2000, p. 159-173
PAULA, Benjamin Xavier de; GUIMARAES, Selva. 10 anos da lei
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2014. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1517-97022014000200009&lng=pt&nrm=iso>.
Acesso em 16 mai.
2018
Pérez
Ringuelet, S. Entrevista al profesor Jacques Le Goff. Boletín de Historia
Social Europea. 1991 núm. 3, p.57-68. En Memoria Académica. Disponível em: http://www.memoria.fahce.unlp.edu.ar/art_revistas/pr.2420/pr.2420.pdf
< acesso em 05 set 2017.
RÜSEN, Jörn. Razão histórica: Teoria da história: fundamentos da ciência
histórica. Brasília: UnB, 2001.
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